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A EVOLUÇÃO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS SOBRE DIREITO AUTORAL: REFLEXOS DO ANTAGONISMO ENTRE DROIT D’AUTEUR E COPYRIGHT
Flavia Savio Cristofaro
In: Panorama do Direito Internacional Privado Atual e Outros Temas Contemporâneos. Belo Horizonte: Editora Arraes, 2015.
SUMÁRIO. I. A importância da uniformização do direito autoral no plano internacional; II. Breve histórico da sistemática de proteção do direito autoral; III. Dicotomia Droit d’auteur x copyright; IV. Principais tratados internacionais; V. Conclusão.
I – A IMPORTÂNCIA DA UNIFORMIZAÇÃO DO DIREITO AUTORAL NO PLANO INTERNACIONAL
O direito autoral, como ramo da propriedade intelectual, tutela as criações do espírito e, por sua natureza, tem vocação internacional. Isso decorre, de um lado, do interesse por parte dos próprios titulares de divulgarem suas obras para além das fronteiras dos Estados de sua nacionalidade ou domicílio, ou ainda do Estado onde a obra foi concebida. Por outro lado, é interesse comum da coletividade que as manifestações culturais não fiquem limitadas por barreiras territoriais, mas sim possam ter o maior alcance possível.
No entanto, essa noção de difusão das obras imateriais no plano internacional esbarra nos direitos dos titulares sobre as obras, surgindo daí a necessidade de uma regulamentação que, ao mesmo tempo, garanta a integridade desses direitos e permita sua difusão plena.
Além disso, devido à sua própria vocação internacional, é intuitivo que litígios envolvendo direito autoral de alguma forma conectados a mais de um Estado acarretem a famosa questão de Direito Internacional Privado sobre qual a lei aplicável.
Ocorre, porém, que em matéria de direito autoral aplica-se o princípio da territorialidade, segundo o qual a lei do foro onde a proteção é reclamada é exclusivamente competente para decidir a questão.
Conjugando-se o princípio da territorialidade e a vocação internacional do direito autoral, a uniformização das respectivas normas no plano internacional surge como o instrumento essencial para se garantir efetiva proteção a esse direito que, por sua própria natureza, transpassa as fronteiras dos Estados.
Ainda que a “pedra de toque”, a precípua razão de ser, do Direito Internacional Privado seja o conflito de leis materiais no plano internacional, existem ramos do Direito em que a uniformização surge como forma de garantir a efetividade, no cenário internacional, de determinados direitos materiais.
É o que nos ensina o Prof. Jacob Dolinger, ao tratar da importância da uniformização de determinados ramos do direito econômico, como o que regula a propriedade intelectual:
“Pacificou-se a doutrina, que hoje reconhece a impraticabilidade de direcionar em certo sentido uniforme as instituições de Direito Civil, dependentes em cada país de antecedentes, tradições, influências e necessidades diversas (…).
O mesmo já não ocorre com o Direito Comercial e disciplinas afins (Industrial, Intelectual, Marítimo, Aeronáutico) em que os interesses coincidem, tornando possível, e quiçá até necessária, a uniformização de certas instituições jurídicas.
Temos aí o Direito Uniforme dirigido, ou, mais corretamente, Direito Uniformizado (ou Direito Internacional Uniformizado), fruto de entendimentos entre Estados e que se concentram nas atividades econômicas de natureza internacional. (…)
Daí a série de convenções internacionais regendo a uniformização de regras sobre compra e venda internacional, transportes, correspondência postal, telegráfica, radiotelegráfica, propriedade industrial, propriedade intelectual, direito marítimo, direito aéreo, circulação rodoviária, direito cambiário, direito de trabalho, e novas disciplinas que vão compondo o Direito Econômico Internacional. ”
É o Direito Internacional Uniformizado, composto de convenções internacionais que uniformizam as regras jurídicas disciplinadoras de determinada matéria com o objetivo de evitar os denominados conflitos de primeiro grau.
Especificamente em matéria de direito autoral, a existência de dois sistemas reguladores – o droit d’auteur, nascido na França e adotado nos países de origem romano-germânica, inclusive no Brasil – e o copyright – em vigor nos países de origem anglo-saxônica – cada qual com enfoques distintos sobre o tema, tornou a uniformização, através de tratados internacionais, a solução para se garantir a efetividade de tais direitos.
Além disso, a importância da uniformização da regulamentação do direito autoral no plano internacional ganhou uma dimensão ainda maior com os avanços tecnológicos do final do século XX, que multiplicaram a velocidade de divulgação, e o próprio alcance, das obras intelectuais e artísticas. Mas não é só. Novas criações decorrentes desse incremento tecnológico – como os programas de computador, por exemplo – passaram também a ser objeto de proteção em matéria de direito autoral.
Não se pode deixar de mencionar, ainda, que o fato de a internet possibilitar a propagação ilimitada das obras intelectuais, sem que se saiba nem mesmo a origem de reproduções e usos indevidos, alçou a proteção do direito autoral no plano internacional à pauta dos assuntos prioritários no mundo moderno.
II – BREVE HISTÓRICO DA SISTEMÁTICA DE PROTEÇÃO DO DIREITO AUTORAL
Há quem aponte a criação da imprensa, por Gutenberg, em meados do século XV, como a mola propulsora do direito autoral, pois a partir desse invento os autores começaram a perder o controle sobre a reprodução de suas obras, que até então eram manuscritas. Surgiu, então, o sistema de privilégios, segundo o qual os monarcas concediam aos livreiros e editores o privilégio de explorar economicamente uma obra por um determinado período de tempo. Nesse sistema, o objeto de proteção eram os processos de reprodução das obras, e não os interesses dos autores ou a própria integridade da obra literária.
Foi somente com o fim do regime dos privilégios que surgiu a primeira regulamentação em que havia um viés de proteção ao direito autoral propriamente dito: o Estatuto da Rainha Ana, datado de 1710, editado na Inglaterra. A base dessa regulamentação era a proteção ao direito de cópia e dela surgiu o sistema de copyright que veio a ser adotado em países como a própria Inglaterra e os Estados Unidos.
Já o sistema do droit d’auteur surgiu na época da Revolução Francesa, com a edição de decretos que reconheceram, pela primeira vez, a noção de propriedade literária e artística, centrando-se a proteção legal na figura do autor.
Nos Estados Unidos, a Constituição de 1789 assegurou aos autores direitos exclusivos sobre suas obras e invenções e precedeu o Federal Copyright Act, de 1790.
No Brasil, a semente de proteção ao direito autoral surgiu, de forma emblemática, com a criação dos primeiros cursos jurídicos em São Paulo e Olinda, em 1827, tendo sido concedido privilégio exclusivo, pelo prazo de dez anos, aos autores dos compêndios adotados em tais instituições. Posteriormente, em 1898, foi editada a Lei nº 496, que definia e garantia os direitos autorais no País.
Inicialmente, o direito autoral passou por um estágio de admissão e consolidação nas legislações internas , tendo os respectivos processos ocorrido em ritmos diferentes nos diversos países.
Justamente devido à vocação internacionalista do direito autoral, a proteção conferida pelas legislações internas dos Estados não foi suficiente para preservar o autor e a obra. Foram, então, firmados convênios bilaterais entre os países prevendo a reciprocidade de proteção no âmbito do direito autoral, ou seja, um país garantia aos autores e obras de outro país a mesma proteção garantida a autores e obras nacionais.
É natural que esses acordos bilaterais tenham primeiramente sido celebrados entre países de língua comum. Nesse sentido, o primeiro acordo bilateral assinado pelo Brasil para a proteção recíproca do direito autoral foi com Portugal, em 1889, cuja execução no País foi determinada pelo Decreto nº 10.353/1889. No entanto, como assinala José de Oliveira Ascensão, a idiossincrasia desse primeiro acordo bilateral é que na época não havia legislação nacional no Brasil em matéria de direito autoral a que os portugueses pudessem recorrer.
O escopo limitado de abrangência dos acordos bilaterais não foi suficiente para garantir a proteção internacional que o direito autoral demandava e surgiram, então, as convenções internacionais envolvendo vários países signatários. Antes, no entanto, de analisarmos os principais tratados internacionais sobre o tema, faremos no próximo capítulo uma síntese dos aspectos que distinguem os regimes do droit d’auteur e do copyright, até para que se possa entender de que forma certas posições antagônicas dos dois sistemas foram harmonizadas no plano internacional.
III – DICOTOMIA DROIT D’AUTEUR X COPYRIGHT
Já se disse que o sistema do droit d’auteur nasceu na França e que tem como centro de proteção o criador da obra intelectual. Na Comunidade Europeia, a legislação francesa é a mais protetiva dos direitos dos autores. O princípio central do droit d’auteur é garantir ao autor propriedade exclusiva sobre sua obra, oponível a todos, sendo essa propriedade imaterial composta de direitos morais e direitos patrimoniais.
Segundo a tradição francesa, os direitos autorais são direitos personalíssimos, alçados à categoria de direitos humanos fundamentais consagrados pela Déclaration des Droits de L’Homme et du Citoyen, de 1789 .
No Brasil, que segue a vertente francesa do droit d’auteur, os direitos autorais também estão na categoria de direitos fundamentais.
A finalidade dos direitos patrimoniais é garantir ao titular a prerrogativa exclusiva de determinar as condições de exploração econômica de sua obra e de receber a respectiva contraprestação financeira. Como a propriedade do autor sobre a obra é de natureza intelectual, incorpórea, é importante distinguir os direitos intelectuais do autor do suporte físico onde a obra se materializa. Nesse sentido, a venda de um livro ou de um quadro não importa, naturalmente, na cessão dos respectivos direitos de autor.
No sistema do droit d’auteur a proteção legal garantida ao autor independe de registro, ou seja, nem o registro, nem qualquer outra formalidade, tem efeito constitutivo do direito do autor. Assim, a proteção legal garantida ao autor é contemporânea à criação de uma obra inédita.
Já os direitos morais garantidos ao autor têm como finalidade proteger a personalidade do autor expressa através de sua obra.
Os principais direitos morais garantidos ao autor no sistema do droit d’auteur sãos os seguintes:
(i) Direito de divulgação: o autor tem a faculdade de divulgar sua obra, podendo decidir mantê-la inédita (direito ao inédito). Compete também ao autor a prerrogativa de determinar as formas de divulgação da sua obra.
(ii) Direito de paternidade: o autor tem o direito de ser reconhecido publicamente como o criador da obra divulgada. Ele tem a faculdade de permanecer anônimo ou de divulgar a obra sob pseudônimo, mas sempre permanece com o direito de proibir a usurpação da paternidade de sua obra por terceiros.
(iii) Direito à integridade da obra: o autor tem o direito de se opor a quaisquer modificações, acréscimos ou supressões que violem a integridade da obra ou que atinjam sua própria honra ou reputação.
(iv) Direito de retirada: o autor tem o direito de retirar de circulação a obra ou de suspender qualquer forma de utilização já autorizada, cabendo indenização aos terceiros prejudicados.
Enquanto os direitos patrimoniais garantidos aos autores no sistema do droit d’auteur são limitados no tempo – ou seja, após um determinado período , caem no domínio público – os direitos morais são perpétuos. No Brasil, apesar de a regra geral ser que os direitos morais do autor são inalienáveis e irrenunciáveis, alguns de tais direitos são transmitidos aos herdeiros.
Enquanto o droit d’auteur tem como centro de proteção a figura do criador, o copyright, como seu próprio nome indica, destina-se a proteger o direito de cópia, o direito de reprodução da obra. O objeto de proteção no sistema do copyright é a obra em si.
Tradicionalmente, a concepção do copyright deita raízes em sua função econômica, de remunerar o direito de reprodução. Como ver-se-á abaixo, nem sempre esse direito é garantido ao autor da obra, como ocorre no droit d’auteur. Nesse passo, ao contrário do droit d’auteur, o copyright não constitui um direito fundamental, mas sim um direito econômico.
O copyright é adotado na Inglaterra, nos Estados Unidos, no Canadá e em outros países da common law.
Originalmente, a proteção garantida no âmbito do sistema do copyright dependia do cumprimento de determinadas formalidades, como a prevista no United States Copyright Act of 1909, que exigia a colocação da nota “copyright” na própria obra, composta pelo símbolo ©, seguido do nome ou marca do titular da obra e do ano da primeira publicação. Se a obra fosse publicada sem esse símbolo, caía no domínio público e seu titular não guardava direitos sobre ela. Além disso, as obras também deveriam ser registradas para gozar da proteção no sistema do copyright. Conforme será analisado no capítulo seguinte, a exigência dessas formalidades foi um dos fatores que, durante muitos anos, impediu os Estados Unidos de aderir a convenções internacionais sobre o tema, como a Convenção de Berna. De todo modo, até hoje o registro da obra nos Estados Unidos é estimulada em determinados aspectos, como, por exemplo, para constituir prova para o deferimento de statutory damages.
No sistema do copyright os direitos morais têm proteção substancialmente mais reduzida do que no sistema do droit d’auteur. Nesse sentido, ainda que nos Estados Unidos sejam reconhecidos os direitos à paternidade e à integridade da obra , não é garantido ao autor o direito de retirar a obra de circulação, como ocorre, por exemplo, no Brasil. No caso de obras produzidas no âmbito de contrato de trabalho, a tutela dos direitos morais de autor tem abrangência ainda mais reduzida no regime do copyright, eis que os direitos autorais são garantidos, prima facie, ao empregador, e não ao empregado, a não ser que contratualmente se estabeleça de forma diversa . No Canadá, nos Estados Unidos e na Inglaterra, os direitos morais podem até mesmo ser objeto de renúncia, ainda que não possam ser cedidos.
Outro aspecto representativo das diferentes versões da proteção garantida pelos sistemas do droit d’auteur e do copyright é o conceito de “autor” nas produções cinematográficas. Enquanto nos países que adotam o droit d’auteur o autor de um filme é o seu criador intelectual, nos países que seguem o copyright a autoria de um filme é garantida a seu produtor.
Já no que toca aos direitos patrimoniais, ambos os sistemas têm como cerne a proteção da exploração econômica da obra. Todavia, enquanto nos países que adotam o droit d’auteur as respectivas regras protetivas seguem caráter mais genérico, a legislação dos países que adotam o copyright é bem detalhada, prevendo de forma minuciosa as diversas formas de exploração econômica das várias espécies de obra intelectuais. Isso faz com que exista a constante necessidade de alteração e/ou adaptação das leis de copyrigt na medida em que se contemplam novas formas de utilização das obras intelectuais.
As características básicas do copyright acima destacadas evidenciam que o caráter patrimonial do direito autoral nos países da commom law se opõe ao conceito de direito fundamental que o direito autoral assume nos países de tradição romano-germânica.
IV – PRINCIPAIS TRATADOS INTERNACIONAIS
IV.1 – CONVENÇÃO DE BERNA
Conforme analisado no capítulo II, o primeiro passo para a universalização da proteção ao direito autoral – através de tratados bilaterais – mostrou-se insuficiente para garantir a abrangência que essa proteção reclamava. Assim, no final do século XIX, começaram a surgir os tratados multilaterais, sendo a Convenção de Berna o primeiro deles:
“Após fase essencialmente marcada pelo bilateralismo, o final do século XIX caracterizou-se pela internacionalização da proteção dos direitos de propriedade intelectual, voltado para a gradativa institucionalização e adoção dos primeiros tratados multilaterais, também admitidos como fontes clássicas do Direito Internacional da Propriedade Intelectual. A reclamada insuficiência da proteção dos interesses dos autores e inventores no domínio dos direitos domésticos e a ausência de instituições que assegurassem sua tutela administrativa e jurisdicional foram razões que justificariam a adoção da (…) Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas, de 9 de setembro de 1886 (…).”
A Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas, firmada em 1886, foi objeto de várias revisões e adendos , tendo a versão atualmente em vigor sido feita em Paris, em 1971, e posteriormente modificada na mesma cidade, em 1979.
A origem da Convenção de Berna deita raízes nos trabalhos desenvolvidos pela Association Littéraire et Artistique Internationale, fundada em 1878, e tendo o grande escritor francês Victor Hugo como presidente de hora. O primeiro rascunho da Convenção surgiu em um congresso internacional realizado em Roma, em 1882, dando início a reuniões nos anos seguintes até a versão original da Convenção, em 1886.
Inicialmente, a Convenção de Berna foi ratificada por 10 países, que formaram uma União (a “União de Berna”) para a proteção dos autores sobre suas obras literárias e artísticas. Atualmente, são 168 os países signatários da Convenção, que é administrada pela Organização Mundial de Propriedade Intelectual – OMPI , incorporada nas Nações Unidas em 1974.
A Convenção de Berna possui normas convencionais e normas de conflito, além de disposições administrativas. As normas convencionais são as que têm como função resolver os conflitos decorrentes da exploração internacional das obras e, por essa razão, são aplicáveis em todos os países membros. Por esse sistema, a Convenção obriga os países a legislar num determinado sentido ou então se substituí às legislações nacionais, estabelecendo uma regulamentação comum. Já as normas de conflito não fornecem soluções diretas, mas sim têm como finalidade regulamentar os conflitos de leis remetendo para a legislação do país onde a proteção é reclamada. Todas essas normas formam o direito convencional e têm caráter obrigatório para os países membros, sendo admitidas reservas em casos específicos. Existem ainda, excepcionalmente, algumas disposições de caráter facultativo, que oferecem à legislação interna a possibilidade de se desviar, em certas circunstâncias e sob certas condições, dos níveis mínios de proteção previstos na Convenção.
O Brasil aderiu à Convenção de Berna através do Decreto nº 4.541, de 1922, e aprovou o texto atual através do Decreto nº 75.699, de 1975.
Uma das principais bases da Convenção de Berna é a consagração do princípio de tratamento nacional, segundo o qual todos os autores de obras publicadas ou representadas em um estado contratante, independentemente de sua nacionalidade, recebem nos países da União o mesmo tratamento que os autores nacionais deste estado contratante. É importante destacar que a proteção concedida em um país independe da existência de proteção semelhante no país de origem da obra (artigo 5.2). Com isso, antes mesmo de os Estados Unidos aderirem à Convenção de Berna, seus nacionais já gozavam das proteções garantidas pela referida Convenção nos países unionistas, ainda que os estrangeiros não pudessem usufruir do mesmo benefício nos Estados Unidos.
Embora a Convenção tenha garantido a faculdade de os países unionistas manterem determinadas particularidades em suas legislações internas, com as revisões ocorridas nos anos posteriores essas diferenças foram se atenuando e, ainda que não se tenha alcançado a unificação plena em matéria de direito autoral, os países se engajaram em aplicar nas suas relações mútuas determinadas regras uniformes.
A adesão dos países que seguem o sistema do copyright à Convenção de Berna teve que ultrapassar alguns entraves decorrentes das divergências entre as normas convencionais – que seguiam a tradição romano-germânica – e os princípios básicos do copyright.
Nesse sentido, embora o Reino Unido tenha aderido à Convenção em 1887, somente passou a implementar grande parte das disposições unionistas quase cem anos depois. Já os Estados Unidos somente aderiram à Convenção em 1989, justamente porque resistiam em aceitar normas como as de proteção aos direitos morais e as que garantem a proteção autoral independentemente de registro ou da adoção de formalidades.
Os direitos morais passaram a ser garantidos aos autores no âmbito da Convenção de Berna com a revisão de Roma, em 1928. A esse respeito, o artigo 6 bis prevê que, independentemente dos direitos patrimoniais e mesmo no caso de cessão dos direitos patrimoniais, o autor conserva o direito de reivindicar a paternidade da obra e de se opor a qualquer tipo de deformação, mutilação ou modificação da obra, prejudiciais à sua honra ou à sua reputação. Além disso, a alínea segunda do mesmo artigo, introduzida pela revisão de Bruxelas de 1948 e posteriormente modificada pela revisão de Estocolmo de 1967, garante a manutenção dos citados direitos morais mesmo depois da morte do autor, ao menos até a extinção dos direitos patrimoniais, sendo tais direitos exercidos pelos sucessores assim reconhecidos pelas respectivas legislações onde a proteção é reclamada.
No entanto, justamente devido à resistência dos países que seguem o regime de copyright de admitir os direitos morais do autor, a mesma alínea segunda do artigo 6 bis faculta aos países cuja legislação interna não garanta proteção post mortem aos direitos morais do autor apresentar reserva quanto a essa estipulação.
Além disso, comparando os direitos morais previstos na Convenção de Berna com aqueles garantidos nos países que adotam o droit d’auteur, verifica-se que a proteção convencional nesse caso é mais reduzida, justamente como uma forma de adequação à resistência dos países que adotam o copyright de admitirem os direitos morais de autor.
Em contraste com a base original do copyright, que previa a exigência de formalidades para o reconhecimento dos direitos de autor, a Convenção de Berna afasta a exigência de qualquer tipo de formalidade para o gozo e exercício desses direitos no âmbito da União (artigo 5.2). Essa estipulação foi outra razão que fez com que os Estados Unidos resistissem durante muito tempo em aderir à Convenção de Berna, tendo levado esse país a liderar os trabalhos para a elaboração da Convenção Universal dos Direitos de Autor, também conhecida como Convenção de Genebra, que, como será melhor analisado no capítulo IV.3 abaixo, previa o cumprimento de uma formalidade mínima para o reconhecimento dos direitos de autor.
A regra geral é que o prazo de proteção concedido pela Convenção de Berna abrange todo o período de vida do autor e se estende no mínimo até cinquenta anos depois de sua morte (artigo 7). “O modo de computação do prazo baseado sobre a data da morte do autor está integrado no espírito da Convenção, que liga estreitamente a obra à pessoa do seu autor.” Essa observação, constante do próprio Guia da Convenção de Berna, evidencia a estreita ligação da referida Convenção com os princípios básicos do droit d’auteur.
Tanto no sistema do copyright, quanto no sistema do droit d’auteur, estabeleceram-se, de forma esparsa, algumas limitações ao direito de o autor explorar economicamente a sua obra, que tiveram origem nas defesas produzidas contra as alegações de contrafação. No âmbito da Convenção de Berna, aperfeiçoou-se o conceito de que existem algumas hipóteses de usos lícitos de obras alheias que devem ser admitidas.
Foi na revisão de Estocolmo, em 1967, que se introduziu na Convenção a denominada “regra dos três passos” (three-step test), prevista no artigo 9.2, segundo a qual é permitida a reprodução de obras literárias e artísticas protegidas, desde que estejam presentes os seguintes requisitos: (i) a reprodução só é admitida em casos especiais; (ii) a reprodução não pode afetar a exploração normal da obra; e (iii) a reprodução não pode causar prejuízos injustificados aos interesses legítimos do autor.
A Convenção prevê em seu artigo 10 as limitações ao direito de autor que considera lícitas, tendo como base o caráter científico ou didático do uso que se pretende fazer da obra. Nesse sentido, é permitida a citação de trecho de obra feita segundo os bons costumes e na medida justificada pelo fim a atingir, desde que, cumulativamente, a obra já tenha sido tornada acessível ao público licitamente. A Convenção prevê, ainda, que a legislação interna dos países unionistas estabeleça a regulamentação da utilização lícita de obras literárias a artísticas para fins de ilustração do ensino.
A regra dos três passos é considerada a limitação mais moderna dos direitos de autor e, justamente por sua importância, foi reproduzida em outros tratados internacionais sobre o tema, como se verá na análise do Acordo TRIPS, feita no capítulo IV.6 abaixo.
IV.2 – CONVENÇÃO DE WASHINGTON
Paralelamente ao movimento de unificação das regras sobre direito autoral no continente europeu, iniciativa semelhante também surgiu no continente americano. No entanto, o ápice desse movimento só se deu mais de meio século depois da Convenção de Berna, com a Convenção de Washington de 1946, que é administrada pela OMPI. Como grande exportador de obras intelectuais, os Estados Unidos tinham interesse em unificar as regras esparsas existentes no continente americano e, ao mesmo tempo, fazer um bloco perante a Convenção de Berna, a qual tinham resistência em aderir, como visto no capítulo anterior.
No entanto, os Estados Unidos acabaram não ratificando a Convenção de Washington, preferindo adotar a Convenção Universal, que foi elaborada alguns anos depois e que será analisada no capítulo seguinte.
Ainda que a proteção concedida no âmbito da Convenção de Washington independa de registro (artigo IX), previu-se a aposição da expressão “direitos reservados”, ou da sigla “D.R.”, seguida de informações como o ano de início da proteção, o nome e endereço do titular de direito sobre a obra e o lugar de origem da obra (artigo X). Essa previsão estava em consonância com os princípios de formalidade vigorantes no regime do copyright.
Outra concessão feita ao sistema do copyright foi a possibilidade de cessão e de renúncia dos direitos morais de autor (art. XI), o que, face às conquistas promovidas pelo droit d’auteur, representava um retrocesso.
Diferentemente da Convenção de Berna e da Convenção Universal, a Convenção de Washington não prevê um prazo mínimo de proteção, deixando esse aspecto para ser regulado pela legislação interna dos Estados contratantes (artigo VIII).
Ainda que a Convenção de Washington não tenha alcançado a importância que dela se esperava, com a falta de adesão dos Estados Unidos, a doutrina vê nesse instrumento internacional importante fonte histórica, que serviu de experiência para a Convenção Universal.
O Brasil promulgou a Convenção de Washington através do Decreto nº 26.675/1949.
IV.3 – CONVENÇÃO UNIVERSAL SOBRE DIREITO DE AUTOR
A Convenção Universal sobre Direito de Autor – também conhecida como Convenção de Genebra – foi concebida sob a liderança dos Estados Unidos, em 1952, país que, como visto, não concordava com o princípio da ausência de formalidades adotado na Convenção de Berna. A Convenção Universal é administrada pela UNESCO.
A maioria dos países signatários da Convenção de Berna também aderiu à Convenção Universal, como forma de viabilizar a efetiva proteção de suas obras nos Estados Unidos e, assim, tentar conquistar o promissor mercado norte-americano.
Ainda que a Convenção Universal apresente um nível de proteção inferior ao que advém da Convenção de Berna, aquela convenção teve importante função de unir Estados que não garantiam o mesmo nível de proteção às obras intelectuais. Em matéria de duração da proteção, o prazo concedido pela Convenção Universal – de 25 anos após a morte do autor, nos termos do artigo IV.2 – é sensivelmente inferior ao garantido pela Convenção de Berna (50 anos).
A Convenção Universal lidou com o requisito das formalidades, tão caro para os países que adotam o sistema do copyright, da seguinte forma: os Estados cuja legislação interna exigisse, como condição para conceder a proteção ao direito de autor, o cumprimento de determinadas formalidades, deveriam aceitar, em relação a obras publicadas pela primeira vez fora de seu território por um autor que não fosse seu nacional, que essas formalidades fossem substituídas pela aposição na obra do símbolo ©, com a indicação do nome do autor e do ano da primeira publicação. Entretanto, em relação a obras publicadas pela primeira vez no território do Estado onde a proteção fosse reclamada e cujo autor fosse nacional deste Estado, poderiam continuar a ser exigidas formalidades ou outras condições para a aquisição da proteção que fossem previstas na legislação destes Estados (vide artigo III, alíneas 1 e 2). Como o artigo II, alínea 3, prevê que os Estados podem, em suas legislações internas, prever que os autores nele domiciliados sejam assemelhados a seus nacionais, os Estados Unidos exigiram que os estrangeiros domiciliados em seu território cumprissem as formalidades exigidas de seus nacionais para se beneficiarem da proteção aos direitos de autor.
A Convenção Universal não previu proteção aos direitos morais de autor justamente como uma forma de atrair os países adeptos do copyright, avessos à adoção dessa categoria de direitos.
Como os membros da União de Berna temiam que a Convenção Universal, por conter um âmbito de proteção mais limitado, esvaziasse a Convenção de Berna, fazendo com que os países signatários migrassem de convenção, foi incluída na Convenção Universal a seguinte previsão: “a presente convenção em nada afeta as disposições da Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas, nem obsta a que os Estados contratantes pertençam à União criada por esta última convenção” (artigo XVII.1). Além disso, afastou-se a aplicação da Convenção Universal para obras cujo país de origem tivesse abandonado a União de Berna depois de 1º de janeiro de 1951 e também nas relações entre países ligados pela Convenção de Berna (declaração anexa à Convenção Universal, relativa ao citado artigo XVII).
Com a adesão dos Estados Unidos à Convenção de Berna em 1989, é inegável que a Convenção Universal perdeu sua importância prática na proteção dos direitos de autor, ainda que conserve importância histórica no processo de harmonização da proteção internacional desses direitos à vista da dicotomia dos sistemas de copyright e de droit d’auteur.
IV.4 – CONVENÇÃO DE ROMA
A Convenção Internacional para a Proteção de Artistas, Intérpretes ou Executantes, dos Produtores de Fonogramas e dos Organismos de Radiodifusão, firmada em Roma em 1961, é o instrumento precursor da proteção internacional dos direitos conexos, tendo assim como centro de proteção não a criação dos autores, mas sim o trabalho artístico dos intérpretes, executantes, produtores e organismos de radiodifusão. Mais conhecida como Convenção de Roma, foi promulgada pelo Brasil por meio do Decreto nº 57.125/1965.
A Convenção de Roma é administrada pela OMPI, pela UNESCO e pela OIT e conta atualmente com 92 Estados contratantes.
Logo em seu artigo primeiro, fica claro que as disposições da Convenção de Roma em nada afetam a proteção aos direitos de autor e, desse modo, nenhuma disposição de tal Convenção pode ser interpretada em prejuízo da proteção aos direitos de autor. Quando de sua elaboração, a Convenção de Roma foi aberta à adesão dos países que já fossem signatários da Convenção Universal ou membros da União de Berna, demonstrando o intuito de que a proteção dos direitos conexos caminhasse lado a lado, no plano internacional, da proteção já garantida aos direitos de autor (artigos 23 e 24).
Em matéria de cumprimentos de formalidades, a Convenção de Roma seguiu a mesma sistemática da Convenção Universal, prevendo a aposição da sigla ℗, seguida do ano da primeira publicação, para a concessão de proteção nos Estados em que o cumprimento de formalidades fosse exigido (artigo 11).
Também em linha com a Convenção Universal, a Convenção de Roma não regula os direitos morais e prevê um prazo de proteção bem mais reduzido do que a Convenção de Berna (20 anos a contar da primeira fixação, execução ou emissão, conforme o caso – artigo 14).
Verifica-se, assim, que Convenção de Roma também procurou compatibilizar os interesses dos países da commom law e dos adeptos do droit d’auteur. No entanto, embora o Reino Unido e o Canadá tenham aderido à Convenção – em 1964 e 1988, respectivamente – os Estados Unidos não se tornaram parte de tal instrumento destinado à proteção dos direitos conexos no plano internacional.
IV.5 – ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA PROPRIEDADE INTELECTUAL (OMPI)
Após a Segunda Guerra Mundial, com a criação da ONU em 1945, o trabalho que até então era realizado pela União de Berna, passou a ser centralizado na Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI, criada pela Conferência de Estocolmo, em 1967.
“Em virtude da relevância da nova organização, do apelo à vocação universal dos direitos de propriedade intelectual, e da ‘transnacionalidade’ de suas relações, a OMPI foi reconhecida como agência especializada das Nações Unidas, pela Resolução nº 3.346 da Assembleia Geral, de 17 de dezembro de 1974.”
O objetivo precípuo da OMPI é o de promover a proteção da propriedade intelectual em todo o mundo, através da cooperação entre os Estados, assegurando a cooperação administrativa entre as Uniões de Paris e de Berna (artigo 3 da Convenção de Estocolmo). Dentre suas funções, destacam-se a de promover medidas de caráter internacional para melhorar a proteção da propriedade intelectual em todo o mundo e harmonizar as legislações nacionais nessa matéria (artigo 4º da Convenção de Estocolmo). Nesse sentido, um dos instrumentos de que dispõe a OMPI para alcançar seu desiderato é justamente a elaboração de tratados internacionais destinados a promover a proteção da propriedade intelectual, sendo essa a razão de aqui se analisar, ainda que brevemente, o papel desse organismo internacional na regulação dos direitos autorais.
Todavia, embora a OMPI seja agência especializada da ONU, não é dotada de mecanismos de fiscalização do cumprimento, pelos Estados, das obrigações decorrentes dos tratados que administra, não tendo poderes para a solução de controvérsias decorrentes da aplicação desses tratados. Nesse sentido, a doutrina esclarece que foi essa limitação da atuação da OMPI uns dos fatores que impulsionou a elaboração do TRIPS, a seguir examinado.
IV.6 – Acordo TRIPS
O Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio – conhecido como Acordo TRIPS – é resultado da Rodada Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais do GATT, realizadas entre 1986 e 1994. O Brasil é parte integrante do TRIPS e promulgou a Ata Final da Rodada do Uruguai através do Decreto nº 1.355/1994.
A grande mudança que o TRIPS trouxe para a proteção internacional dos direitos de autor decorre muito mais do nível de proteção que foi alcançado – eis que o tema passou a integrar o sistema multilateral do comércio internacional, ficando sujeito ao sistema de solução de controvérsias da OMC – do que de ampliação das hipóteses de proteção já regulamentadas pelas convenções que o antecederam.
Em verdade, o TRIPS possibilitou uma interação entre os tratados internacionais preexistentes sobre direitos de autor e sobre direitos conexos, mantendo os padrões mínimos e as normas substantivas da Convenção de Berna.
Nesse sentido, a regra dos três passos da Convenção de Berna foi incorporada ao TRIPS, mas a liberdade dos membros da OMC de estabelecer, em seus ordenamentos internos, normas relativas às exceções e limitações aos direitos de autor foi restringida pelo artigo 13 do TRIPS, verbis:
“Os Membros restringirão as limitações ou exceções aos direitos exclusivos a determinados casos especiais, que não conflitem com a exploração normal da obra e não prejudiquem injustificavelmente os interesses legítimos do titular do direito.”
Em matéria de direitos morais de autor, o TRIPS afasta expressamente a aplicação do artigo 6 bis da Convenção de Berna, denotando que a feição do citado tratado está muito mais centrada em sua racionalidade econômica, do que na perspectiva personalista de proteção do interesse pessoal do autor:
“A exclusão, pelo TRIPS, da aplicação das normas internacionais sobre direitos morais de autor reflete-se, por sua vez, em abordagem contrária à perspectiva personalista das obras de autoria e muito mais centrada na racionalidade econômica, pela qual os titulares têm para si assegurados os direitos de explorar as obras nos diferentes territórios em que a proteção seja reclamada, com o aproveitamento eficiente e espacialmente delimitado da remuneração paga pelo uso da obra.”
A exclusão dos direitos morais de autor do espectro de abrangência do TRIPS decorreu de pressão exercida pelos Estados Unidos, que, como vimos, resistia em aderir à Convenção de Berna justamente em razão da proteção garantida pelo citado instrumento internacional aos direitos morais, não admitida no âmbito do copyright. Nesse aspecto, portanto, a proteção conferida pelo TRIPS é inferior à garantida no âmbito da Convenção de Berna. De todo modo, de acordo com o regime do TRIPS, os países da commom law que não garantissem proteção aos direitos morais de autor não poderiam ser submetidos, por esse fato, ao sistema de solução de controvérsias da OMC.
No tocante ao prazo de proteção dos direitos de autor, o TRIPS incorporou a regra geral do artigo 7 da Convenção de Berna, segundo a qual o prazo de proteção cobre todo o período de vida do autor e se estende até cinquenta anos depois de sua morte. Além dessa regra geral, o artigo 12 do TRIPS prevê que, nos casos em que a duração da proteção de uma obra – que não seja fotográfica ou de arte aplicada – for calculada em base diversa da vida da pessoa física, esse prazo não pode ser inferior a cinquenta anos contados a partir do fim do ano civil da publicação autorizada da obra ou, na ausência desta, contado a partir do fim do ano civil em que a obra foi realizada. Ademais, o artigo 70.2 do TRIPS estabelece proteção retroativa para obras literárias e artísticas que não tenham caído no domínio público e que já fossem existentes no momento em que o TRIPS entrou em vigor, garantindo igual proteção aos direitos dos artistas-intérpretes e produtores de fonogramas existentes.
A breve análise do TRIPS feita neste trabalho permite verificar que as discussões que dividem os países adeptos, de um lado do sistema de droit d’auteur, e de outro do sistema de copyright, desde os primórdios da regulamentação sobre direitos de autor, também se refletiu nesse importante tratado internacional sobre a matéria, que trouxe como novidade a força coercitiva dos instrumentos regulados pela OMC.
IV.7 – Tratados sobre Internet de 1996 (WCT e WPPT) e Agenda Digital da OMPI
Com o surgimento de novas tecnologias, que acarretaram, por conseguinte, novos tipos de obras intelectuais, novo mercado para essas obras e novos métodos de uso e disseminação de tais obras, fez-se necessário a assinatura de tratados com o objetivo de atualizar a regulamentação internacional dos direitos de autor e conexos à vista das relações que se estabeleceram no mundo digital. Nesse sentido, em 1996 foram firmados dois tratados no âmbito da OMPI – o Tratado sobre Direitos de Autor de 1996 (WTC) e o Tratado sobre Execução e Fonogramas (WPPT) .
Durante as negociações entre os membros da OMPI que desembocaram nesses dois tratados, a divergência central de posições deixou de ser entre os adeptos do copyright e do droit d’auteur e passou a dividir, de um lado, os países desenvolvidos – capitaneados por Estados Unidos e Europa – e, de outro, os países em desenvolvimento. Enquanto os países desenvolvidos clamavam por uma maior proteção aos direitos de autor e conexos na internet, os países em desenvolvimento não se encontravam preparados para expandir essa proteção. Tanto é assim que o Brasil, por exemplo, apesar de ter participado das negociações que levaram à assinatura do WCT e do WPPT, não é signatários desses dois tratados.
O preâmbulo dos dois tratados evidencia a preocupação da comunidade internacional em incrementar a proteção dos direitos de autor e conexos, adaptar a aplicação de algumas normas já existentes à nova ordem estabelecida pelos significativos avanços tecnológicos e, ainda, encontrar um ponto de equilíbrio entre os direitos autorais e o interesse público, sobretudo no campo da educação, pesquisa e acesso à informação.
O WCT não derrogou o artigo 6 bis da Convenção de Berna (como fez o TRIPS), o que significa que os direitos morais são reconhecidos aos autores no âmbito desse tratado.
Já o WPPT possui um dispositivo específico regulando os direitos morais de intérpretes e executantes , prevendo o direito de paternidade e o direito è integridade da obra. O artigo 5 do WPPT seguiu a linha do artigo 6 bis da Convenção de Berna, garantindo, ainda, a manutenção post mortem dos direitos morais, permitindo reserva nesse particular aos países cuja legislação interna não prevejam os direitos post mortem. Isso significa que o WPPT tem uma proteção mais abrangente do que a Convenção de Roma, que não tratava dos direitos morais.
Em relação à Convenção de Berna, o WCT ampliou as categorias de direitos de autor, garantindo proteção aos direitos de distribuição (artigo 6), direito de aluguel sobre programas de computador, obras cinematográficas e fonogramas (artigo 7) e direito de comunicação ao público e de colocação das obras literárias e artísticas à disposição do público (artigo 8). A mesma ampliação se verifica no WPPT em relação à Convenção de Roma (vide artigos 8 a 10 e 12 a 14 do WPPT). Essa nova gama de direitos buscou adequar a proteção garantida aos direitos de autor, em que a disponibilização de obras e o acesso que o público tem às obras via internet é uma realidade que demandava regulamentação específica.
Seguindo a “regra dos três passos”, o WCT prevê que os países signatários podem prever em seus ordenamentos domésticos limitações aos direitos de autor segundo a gradação constante do artigo 9.2 da Convenção de Berna (artigo 10 do WCT).
Em linha com a Convenção de Berna, o WCT afasta a exigência de formalidades para que a proteção convencional seja garantida aos direitos de autor. Já o WPPT se opõe à Convenção de Roma nesse aspecto, pois prevê expressamente, em seu artigo 20, que o exercício dos direitos conexos não pode ficar sujeito ao implemento de quaisquer formalidades.
Após a elaboração dos tratados de 1996, a OMPI estabeleceu, em 1999, o que se denominou de “Agenda Digital”, sendo os pontos de destaque os seguintes:
“Os trabalhos da OMPI após a adoção dos tratados de 1996 levaram à consolidação da ‘Agenda Digital’ da Organização, aprovada por sua Assembleia em setembro de 1999. Entre os pontos de destaque está o objetivo de ampliação do acesso às informações relacionadas às políticas de propriedade intelectual, alternativas para uso de bens protegidos por propriedade intelectual no espaço virtual e promoção do ajustamento das normas internacionais para facilitar os negócios envolvidos no comércio eletrônico, especialmente com a extensão dos princípios do Tratado da OMPI sobre Execução e Interpretação de 1996 para execuções audiovisuais, adaptação dos direitos de entidades de radiodifusão à era digital e evolução do debate sobre um possível tratado sobre proteção jurídica de base de dados.”
Os trabalhos da OMPI para implementar a “Agenda Digital” prosseguiram, incluindo-se na ordem do dia maior adesão dos países em desenvolvimento aos Tratados sobre Internet de 1996 analisados neste capítulo.
V. – Conclusão
A breve análise aqui proposta, acerca da regulamentação do direito autoral através de tratados internacionais, possibilitou bem demarcar as divergências conceituais entre os sistemas do droit d’auteur e do copyright. Demonstrou-se que a evolução da uniformização da matéria no plano internacional acabou por suavizar certas arestas existentes entre os dois sistemas, tendo sido feitas concessões de ambos os lados.
Embora determinadas disparidades ainda separem os países adeptos dos dois sistemas, pôde-se perceber que a necessidade de se garantir ampla proteção ao direito autoral e, paralelamente, garantir o interesse público de acesso às obras intelectuais para fins educacionais e de pesquisa, levou à elaboração de convenções internacionais sofisticadas, que aumentam seu espectro de abrangência a cada dia, com a adesão de novos Estados. Nesse sentido, é interessante lembrar que a União de Berna foi inicialmente formada por 10 países e hoje a Convenção de Berna já conta com 168 países signatários.
A importância do direito autoral para o desenvolvimento do comércio internacional pôde ser dimensionada pela inclusão do assunto no âmbito de abrangência da OMC, com o Acordo TRIPS, resultado da Rodada Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais do GATT. Tendo passado a integrar o sistema multilateral do comércio internacional, a proteção ao direito autoral está submetida, hoje, ao sistema de solução de controvérsias da OMC, fator que, inegavelmente, acarreta maior preocupação dos Estados em garantir a observâncias das normas de proteção ao direito autoral em seus respectivos territórios.
Além disso, o surgimento de uma nova categoria de obras intelectuais, decorrentes dos avanços tecnológicos, e de novos usos de tais obras na era digital, são fatores que mudaram a agenda de proteção do direito autoral no plano internacional. Por essa razão, verifica-se ser necessário o incremento das negociações internacionais em ritmo compatível com o desenvolvimento tecnológico, a fim de que sejam concebidos novos mecanismos que equilibrem, da melhor forma possível, a proteção aos direitos autorais e a inevitável disseminação das obras intelectuais, à velocidade da luz, na era digital do novo milênio.