L O A D I N G

Arbitragem nos Contratos Administrativos: Panorama de uma Discussão a ser resolvida

Joaquim Simões Barbosa e Carlos Affonso Pereira de Souza

 

 

 

1. Introdução. 2. Os contratos com a Administração Pública Direta ou Autárquica submetidos ao regime do art. 55, §2º da Lei nº 8.666/93. 3. Os contratos internacionais com a Administração Pública Direta ou Autárquica, regidos pelo art. 32, $6º, da Lei nº 8.666/93. 4. Os contratos de concessão ou permissão para prestação de serviços públicos e a interpretação do art. 23, inciso XV, da Lei nº 8.987/95. 5. Os contratos celebrados pelas sociedades de economia mista no exercício ordinário de suas atividades empresariais. 6. Os contratos firmados sob o regime de algumas Agências Reguladoras. 7. Conclusão.

 

  1. Introdução.

Nosso país tem conseguido atrair, nos últimos anos, volume considerável de investimentos estrangeiros sob a forma de capitais de risco, tudo indicando que essa situação continuará a verificar-se no futuro próximo, já que a promoção desses investimentos também parece ser uma política prioritária do novo governo, recém empossado.

Parte significativa dos capitais estrangeiros que foram ou podem ser atraídos para o país se destina a ser aplicada em áreas onde o Estado está, de alguma forma, envolvido. Por isso, em muitos casos, a viabilidade dos empreendimentos depende do sucesso de contratos a serem celebrados com entes da administração pública.

Para a execução de serviços públicos, por exemplo, o particular necessita celebrar contrato de concessão com o Estado. Esse é o caso de atividades fundamentais para o bom funciona- mento da economia e o bem-estar da população, as quais demandam crescentes inversões de capital, como geração, distribuição e transmissão de energia elétrica, saneamento básico, transportes públicos, construção e exploração de rodovias, etc.

Grandes empresas estatais, como Petrobras, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Eletrobrás, Furnas, etc., continuam a ter um peso sobremaneira importante na economia, e muitos investimentos feitos por estrangeiros no país estão alicerçados em contratos celebrados com essas entidades.

Por outro lado, é fato notório que a disposição dos investido- res estrangeiros em arriscar seus capitais em empreendimentos desse tipo no exterior é grandemente afetada pela possibilidade de submeter à arbitragem os conflitos que possam surgir no âmbito dos relacionamentos contratuais que terão que estabelecer para garantir a viabilidade e segurança dos correspondentes projetos.

O advogado norte-americano Noah D. Rubins, em artigo publicado neste volume, intitulado “Investment Arbitration in Brazil” analisa essa questão de forma bastante contundente, mostrando porque esse aspecto é tão importante para Os investidores estrangeiros e também porque, consequentemente, ele desempenha um papel decisivo na percepção do país como um destino atraente para esses capitais.

O referido artigo mostra como ainda é longo o caminho que o Brasil terá que percorrer para ganhar credibilidade internacional em matéria de garantia de efetividade da convenção arbitral e respeito a normas internacionalmente consagradas relativas ao reconhecimento e execução de laudos arbitrais estrangeiros.

O histórico do instituto no Brasil, anterior à mudança legislativa iniciada apenas em 1996, justifica, em certa medida, algum ceticismo por parte da comunidade jurídica internacional, ainda que, no campo das relações negociais estritamente privadas, não mais existem razões objetivas para tanto. Afinal, a Lei nº 9.307/96 é moderna e enfrenta e resolve diversos obstáculos que existiam ao bom funcionamento do instituto no Brasil, já tendo sido sua constitucionalidade reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal[1]. Além disso, o Congresso brasileiro já ratificou as Convenções do Panamá e de Nova York, dois dos mais importantes tratados internacionais sobre reconhecimento e execução de laudos arbitrais estrangeiros.

O problema é que não se pode ser tão positivo no campo das relações negociais com entidades da Administração Pública, onde a situação continua a inspirar desconfianças e incertezas.

A Lei nº 9.307/96 não contém qualquer dispositivo que autorize expressamente a adoção da arbitragem nos contratos celebrados por tais entidades e essa omissão, aliada a dispositivo problemático da Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 8.666/93), gera insegurança jurídica.

Juristas de renome já escreveram artigos doutrinários [2]sustentando a inexistência de qualquer incompatibilidade entre a cláusula de arbitragem e os contratos administrativos, exceto, naturalmente, no que diga respeito a direitos indisponíveis, que não podem ser submetidos a arbitragem. Esses juristas lembram o precedente do famoso caso Lage, em que o Supremo Tribunal Federal, em decisão de 14.11.1973[3], reconheceu a validade de arbitragem realizada entre a União Federal e o espólio do Sr. Henrique Lage. Mencionam, também, o art. 23, inciso XV, da Lei nº 8.987/95 que tem sido interpretado (ainda que com alguma dose de boa vontade, como veremos mais adiante) como uma autorização para o uso da arbitragem nos contratos de concessão e permissão celebrados com o Poder Público.

Ocorre que os mencionados estudos, com exceção do de Carlos Alberto Carmona (comentado mais adiante), não chegaram a deter-se especialmente no problema criado pelo §2º do art. 55 da Lei nº 8.666/93, diploma que é posterior à decisão do caso Lage[4] e que tem um escopo muito mais abrangente do que a Lei de Concessões e Permissões de Serviços Públicos.

Quer-nos parecer que, levando em consideração o atual quadro legislativo, existem nessa área cinco situações que merecem análises distintas, o que procuraremos fazer nos capítulos posteriores. São elas as seguintes:

  • contratos gerais com a Administração Pública direta ou autárquica, submetidos à prescrição do art. 55, §2º, da Lei nº 8.666/93;
  • contratos internacionais com a Administração Pública direta ou autárquica, expressamente excepcionados da regra contida no referido dispositivo pelo art. 32, §6º, da mesma lei;
  • contratos de concessão ou permissão para prestação de serviços públicos, submetidos à prescrição do art. 23, inciso XV, da Lei nº 8.987/95;
  • contratos celebrados pelas sociedades de economia mista no exercício ordinário de suas atividades empresariais; e
  • contratos firmados por concessionários ou autorizados a prestar serviços que estejam sob o regime das agências reguladoras.

Como se verá, salvo por algumas honrosas exceções, a legalidade da adoção da cláusula compromissória nos contratos com a Administração Pública ainda não chega a ser inteiramente clara, nem está a salvo da possibilidade de incômodos questionamentos.

 

  1. Os contratos com a Administração Pública Direta ou Autárquica submetidos ao regime do art. 55, $ 2º da Lei nº 8.666/93.

Conforme já mencionado, aqui a origem de todo o problema está no §2º do artigo 55 da Lei nº 8.666/93 que estabelece o seguinte:

“Nos contratos celebrados pela Administração Pública com pessoas físicas ou jurídicas, inclusive aquelas domiciliadas no estrangeiro, deverá constar necessariamente cláusula que declare competente o foro da sede da Administração para dirimir qualquer questão contratual, salvo o disposto no §6º do art. 32 desta Lei.”

Segundo aponta Jessé Torres Pereira Júnior, essa é uma regra de competência absoluta em favor da Administração Pública, de natureza ratione personae, inafastável por vontade das partes contratantes.[5]

Ora, se a eleição do foro da sede da Administração “para dirimir qualquer questão contratual” é obrigatória, como pode- ria ser possível adotar uma cláusula compromissória pela qual as partes “comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir relativamente”[6] ao contrato? Como se sabe, por força da Lei de Arbitragem, a existência de uma cláusula compromissória válida afasta completamente a competência do Poder Judiciário para examinar o mérito de qualquer disputa relativa ao contrato. Portanto, adotada a arbitragem, as questões contratuais passam a ter que ser dirimidas pelos árbitros, deixando de sê-lo pelo Judiciário, o que parece ser o efeito contrário àquele pretendido pelo dispositivo legal citado.

Partidário do entendimento de que o recurso à arbitragem é possível nos contratos sujeitos ao regime geral da Lei nº 8.666/93, Carlos Alberto Carmona sustenta a tese de que o referido dispositivo apenas teria se preocupado em deixar desde logo determinado o foro competente para o caso de alguma contenda judicial vir a ser movida, sem vedar expressamente a utilização da arbitragem como alternativa para a resolução das controvérsias advindas da execução do contrato. E o que consta da seguinte manifestação do ilustre professor:

“Quer a Lei de Licitações apenas isto: que as partes convencionem expressamente que eventuais demandas levadas ao Poder Judiciário sejam decididas na sede da Administração, excluídos os de- mais foros (domicílio do licitante, lugar do fato, local onde está situada a coisa), de sorte a facilitar a defesa dos interesses da pessoa jurídica de direito público interno (União, Estados, Municípios, autarquias ou empresas públicas) em eventuais demandas. (…) Nada disso é incompatível com a arbitragem: elegendo as partes foro no contrato (e nos contratos administrativos submetidos à Lei de Licitações é obrigatória a eleição do foro da sede da Administração), estarão apenas determinando que o eventual concurso do juiz togado para realização de atos para os quais o árbitro não tenha competência (atos que impliquem a utilização de coerção, execução da sentença arbitral, execução de medidas cautela- res) seja realizado na comarca escolhida.”[7]

A nós parece difícil, contudo, conciliar essa interpretação com a utilização pelo dispositivo legal das expressões “para dirimir qualquer questão contratual”, já que, ao desempenhar o papel restrito que a arbitragem lhe reserva, limitado à “realização de atos para os quais o árbitro não tenha competência”, o juiz togado não estará, de forma alguma, dirimindo qualquer questão contratual, competência que fica atribuída com exclusividade ao árbitro.

Outra tese que pode ser tentada em defesa da licitude do recurso à arbitragem nos contratos sujeitos ao regime geral da Lei nº 8.666/93, é a de que a palavra “foro” não teria sido utilizada pelo dispositivo legal em questão com o sentido usual de “espaço de uma divisão territorial onde impera a jurisdição de seus juízes e tribunais”, conforme a definição de Pereira e Souza, citada por De Plácido e Silva[8], mas sim com o sentido de sede do procedimento de solução do litígio, seja ele judicial ou arbitral. A adoção da arbitragem seria, então, permitida, desde que realizada no local da sede da Administração.[9]

Ambas são abordagens criativas que tentam solucionar o problema, mas que não chegam a eliminar a compreensível insegurança dos investidores e financiadores estrangeiros quanto à validade e efetividade da estipulação nesses casos. Naturalmente, a almejada segurança poderá vir a ser conquistada nos tribunais com a construção de uma jurisprudência favorável a essas teses. Poderia também ser obtida com a alteração do dispositivo legal em questão para permitir a adoção da arbitragem de forma clara e inequívoca.

 

  1. Os contratos internacionais com a Administração Pública Direta ou Autárquica, regidos pelo art. 32, $6º, da Lei nº 8.666/98.

A controvérsia acima descrita não se aplica aos contratos resultantes das licitações internacionais mencionadas no art. 32, §6º, da Lei nº 8.666/93, pois eles são expressamente excepcionados da obrigação de adotar cláusula de eleição de foro pelo próprio art. 55, §2.

São três os casos que se encontram nessa situação: (i) contratos relativos à “aquisição de bens e serviços cujo pagamento seja feito com o produto de financiamento concedido por organismo financeiro internacional de que o Brasil faça parte, ou por agência estrangeira de cooperação”, (ii) contratos com “empresa estrangeira, para a compra de equipamentos fabricados e entregues no exterior, desde que para esse caso tenha havido prévia autorização do Chefe do Poder Executivo”, e (iii) contratos relativos à “aquisição de bens e serviços realizada por unidades administrativas com sede no exterior.”

O recurso à arbitragem nesses casos não oferece, portanto, maiores dificuldades, ainda que estudo de Márcia Walquiria Batista dos Santos sustente entendimento diverso.[10]

A regra que constava do art. 45, parágrafo único, do Decreto Lei nº 2.300/86, hoje revogado, era muito parecida com a que atualmente consta do art. 55, §2º, da Lei nº 8.666/93, com a diferença de que a versão antiga acrescentava as expressões “permitido nesse caso o juízo arbitral”, após ressalvar da obriga- tória adoção da cláusula de eleição de foro os contratos aqui comentados, o que não ocorre na versão do diploma de 1993. Segundo a referida autora, essa supressão revelaria a intenção do legislador de não mais permitir o recurso à arbitragem nos contratos decorrentes das licitações internacionais. Para ela, por força do princípio da legalidade, a adoção de cláusula compromissória em contratos celebrados pela Administração Pública somente seria lícita com autorização legal expressa[11].

Não compartilhamos, contudo, desse entendimento. Os artigos de Eros Roberto Grau, Mauro Roberto Gomes de Mattos, Carlos Alberto Carmona, Adilson Abreu Dallari e Arnoldo Wald referidos na nota 2 deste trabalho mostram com muita clareza que não há qualquer incompatibilidade intrínseca entre a cláusula compromissória e os contratos administrativos, em matéria que não diga respeito a interesse público indisponível, sendo a obrigatória inclusão de cláusula de eleição de foro “para dirimir qualquer questão contratual”, prevista no art. 55, §2º, da Lei nº 8.666/93, o único empecilho que vislumbramos para o recurso à arbitragem nesses casos.

Portanto, se a lei, objetivamente, sem fazer qualquer ressalva, exclui certos contratos dessa obrigação, o problema, em relação a esses contratos, deixa de existir. Não achamos correto tentar atribuir qualquer significado especial ao fato de o legisla- dor ter resolvido adotar, em um diploma legal diferente, um texto mais simplificado, com supressão de expressões que, na verdade, sequer eram necessárias.

 

  1. Os contratos de concessão ou permissão para prestação de serviços públicos e a interpretação do art. 23, inciso XV, da Lei nº 8.987/95.

A Lei de Concessões e Permissões de Serviços Públicos (Lei nº 8.987/95) estabelece em seu art. 23 as “cláusulas essenciais do contrato de concessão”, constando do inciso XV aquela relativa ao “foro e ao modo amigável de solução das divergências contratuais.”

Conforme anteriormente mencionado, esse dispositivo tem sido interpretado como contendo uma expressa autorização legal para a adoção da arbitragem nos contratos de concessão e permissão relativos à prestação de serviços públicos. Vale destacar o entendimento de Adílson Abreu Dallari, segundo o qual a arbitragem no caso não seria apenas permitida, mas sim obrigatória, por força da disposição legal[12].

Ainda que chamando atenção para a ausência de enunciado expresso que preveja o recurso à arbitragem, Arnoldo Wald também defende a legalidade da cláusula compromissória nos contratos de concessão, fazendo os seguintes comentários ao dispositivo legal em questão:

“Muito embora não tenha sido expressamente enunciado, pode o contrato estabelecer, como instrumento para viabilizar a composição dos conflitos na aplicação do contraio de concessão, o juízo arbitral, competindo aos árbitros indicados pelas partes, o julga- mento extrajudicial da controvérsia. A arbitragem, desde que observadas as prescrições legais civis e processuais, obriga as partes evitando a complexidade e a morosidade do processo judicial.”[13]

A interpretação que vê no art. 23, inciso XV, da Lei nº 8.987/95 uma expressa autorização para a estipulação da arbitragem, foi adotada em importante precedente do Tribunal de Justiça do Distrito Federal[14] e em ao menos uma decisão do Tribunal de Contas da União,

“A utilização da arbitragem encontra, portanto, fundamento legal, sendo descabido falar-se em violação do princípio da legalidade, e constitui forma célere e econômica para a solução de litígios em contratos de concessão, podendo apenas trazer vantagens para a Administração Pública. Deve-se concluir, portanto, que a utilização de árbitros possui amparo legal (Lei 8987/95) e apresenta-se conveniente para a Administração Pública, não sendo mais possível após o advento da legislação mencionada, falar-se em ilicitude da cláusula do Contrato de Concessão…”[15]

Prevalecendo essa posição que se vem firmando na doutrina e na jurisprudência, fica consagrada a legalidade da adoção da cláusula compromissória nessa importante modalidade de contrato celebrado pelo Poder Público.

Gostaríamos de registrar, contudo, que essa interpretação do dispositivo legal, que vê como uma autorização expressa à adoção da arbitragem a obrigatoriedade da cláusula relativa ao “foro e ao modo amigável de solução das divergências contratuais”, não é a única possível. Clávio Valença Filho [16], por exemplo, menciona o que ele chama de “interpretação arraigada à tecnicalidade dos conceitos”, que parte da constatação de que não se pode “confundir arbitragem e modos amigáveis de resolução de controvérsias”. As razões para tanto, por ele apresentadas para obstar tal confusão, seriam as seguintes:

“Por se tratar de método eminentemente jurisdicional de resolução de controvérsias, a decisão proferida pelo árbitro é uma verdadeira sentença, enquanto a decisão resultante dos métodos amigáveis tem, normalmente, natureza contratual.”[17]

Métodos amigáveis de resolução de conflitos seriam, na “tecnicalidade dos conceitos”, considerados pelo referido autor “a conciliação, a mediação e o mini-trial”, nunca a arbitragem.

Porém, ainda que essa interpretação, não sendo vista como uma mera tecnicalidade, acabe prevalecendo, entendemos que isso não deveria afetar a legalidade da estipulação da cláusula compromissória nos contratos de concessão. O art. 55, 82º, da Lei nº 8.666/93, o único empecilho que vislumbramos para o recurso à arbitragem nos contratos com a Administração, clara- mente não se aplica aos contratos de concessão e o art. 23, XV, da Lei nº 8.987/95 é redigido em termos muito mais flexíveis, que permitem, com muito mais facilidade, a interpretação favorável à arbitragem.

O dispositivo da Lei de Concessões estabelece que é obriga- tória uma cláusula relativa ao foro, mas não diz, como faz o dispositivo da Lei de Licitações, que é obrigatória a eleição do foro da sede da Administração “para dirimir qualquer questão contratual”. Uma cláusula apenas “relativa ao foro” poderia, por exemplo, ser uma cláusula prevendo a arbitragem e elegendo o foro de determinada comarca “para realização de atos para os quais o árbitro não tenha competência (atos que impliquem a utilização de coerção, execução da sentença arbitral, execução de medidas cautelares)”, como sugeriu o Professor Carlos Alberto Carmona, em citação já aqui anteriormente comentada.[18]

 

  1. Os contratos celebrados pelas sociedades de economia mista no exercício ordinário de suas atividades empresariais.

Antes da promulgação da Emenda Constitucional nº 19, de 04.06.1998, a Constituição Federal, ao mesmo tempo em que expressamente submetia a sociedade de economia mista “ao regime jurídico próprio da empresa privada” (art. 173, §1º), mandava aplicar as mesmas “normas gerais de licitação e contra- tação, em todas as modalidades” (art. 22, inciso XXVII), indistintamente, à administração pública direta e indireta, ai também incluídas, portanto, as sociedades de economia mista.

Isso retirava muito da significação prática do art. 173,§1º, pois o regime jurídico próprio da empresa privada não era aplicável às sociedades de economia mista em um dos aspectos mais importantes da sua existência: nada menos do que todas as modalidades de contratos por elas celebrados ficavam excluídos desse regime e submetidos às mesmas normas rígidas e extravagantes criadas para a administração pública direta.

A Emenda Constitucional nº 19/98 alterou a redação de ambos os dispositivos, com o claro objetivo de mudar essa situação.

No §1º do art. 173 determinou ao legislador ordinário a edição de uma nova lei, chamada de “estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica”, deixando desde logo estabelecido que esse diploma deveria, por um lado, submeter as referidas entidades “ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comer- ciais, trabalhistas e tributários” e, por outro lado, conter regras especiais sobre “licitação e contratação de obras, serviços, com- pras e alienações, observados os princípios da administração pública”.

A nova redação do inciso XXVII do art. 22 introduzida pela Emenda Constitucional nº 19/98 deixa claro que o diploma legal contendo as normas gerais de licitação e contratação aplicáveis à administração pública direta não mais deve se aplicar às empresas públicas e sociedades de economia mista, as quais deverão passar a ser regidas, nesse particular, pelo diploma previsto no §1º do art. 173.

As normas gerais de licitação e contratação da administração pública previstas no inciso XXVII do art. 22 da Constituição foram instituídas pela Lei nº 8.666/93. Esse diploma foi editado antes da promulgação da Emenda Constitucional nº 19/98 e seu art. 1º, parágrafo único, subordina ao regime por ele instituído também as empresas públicas e sociedades de economia mista. A polêmica que existe entre os doutrinadores é sobre se, enquanto não é editada a nova lei prevista pela Constituição, continua a valer essa regra e a Lei nº 8.666/93 permanece aplicável às empresas públicas e sociedades de economia mista.

Entre os que entendem que a Lei nº 8.666/93 só deixará de ser aplicável após a edição da nova lei está Maria Sylvia Zanella di Pietro, para quem as sociedades de economia mista e suas subsidiárias, por conta da Reforma Administrativa,

“poderão escapar às normas da Lei nº 8.666, a partir do momento em que for definido, em lei, o estatuto jurídico dessas empresas, que disporá, dentre outras coisas, sobre licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da Administração Pública”, conforme previsto no art. 173,§1º,III, da Constituição, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 19/98.”[19]

Sendo assim, adverte a autora que “[e] enquanto não promulgada a lei prevista nesse dispositivo constitucional, que não é auto-aplicável, tais empresas continuam a submeter-se à Lei nº 8666…”[20]

Afirmando que a previsão do art. 173, 81º, III, apenas se aplica às sociedades de economia mista que explorem atividades econômicas (nada tendo a ver com as prestadoras de serviço público), Celso Antonio Bandeira de Mello também é categórico a esse respeito:

“[a]s empresas estatais exploradoras de atividade econômica futuramente terão as suas licitações e contratos regidos pela Leia que se refere o art. 22, XXVII, da Constituição Federal, com a redação que lhe deu o “Emendão”, isto é, na conformidade do estatuto para elas previsto no art. 173 da Lei Magna. Enquanto isso não ocorrer persistirão regidas pela Lei 8.666, com as ressalvas inicialmente feitas.”[21]

O Tribunal de Contas da União, em decisão do plenário, chegou a determinar à Petrobrás que “observe os ditames da Lei 8.666/93 e o seu anterior regulamento próprio, até a edição da lei que trata o §1º do art. 173 da Constituição Federal, na redação dada pela Emenda Constitucional 19/98. [22]

Essa corrente doutrinária é fortemente combatida, a nosso ver com razão, por Diogo Figueiredo Moreira Neto, que esclarece a sua posição da seguinte forma:

“As sociedades de economia mista foram nominadamente excluí- das do alcance das normas gerais, de competência da União, previstas no art. 22, XXVII, da Constituição e, em consequência, do regime geral instituído pela Lei nº 8.666/93, mas o mesmo dispositivo constitucional, in fine, a sujeita a um específico regime para as suas licitações e contratações, disposto no já referido estatuto jurídico (art. 173, §1º, III).

Por estarem submetidas a esse regime legal especial, excepcional- mente limitador da livre contratação, fica afastado não só o regime legal geral de licitações e contratações administrativas, fundado no art. 22, XVII, CF, como também a sua aplicação subsidiária, pois nenhum regime público, pouco importa se geral ou especial, poderá ser aplicada para ampliar ou agravar uma estrita derrogação do regime próprio estabelecida no art. 173,§ 1º, II da Constituição.”[23] (grifos no original)

Parece haver consenso entre os doutrinadores de que a reforma constitucional teve por objetivo aliviar as empresas estatais de entraves burocráticos. Para Adilson Abreu Dallari, por exemplo, substituiu-se o antigo modelo burocrático, caracterizado pelo controle rigoroso dos procedimentos, por um modelo gerencial, abrandando-se o controle sobre procedimentos em prol de um controle de resultados. O formalismo cederia lugar à eficiência.[24]

Diogo Figueiredo entende que o novo regime especial previsto na Emenda Constitucional foi “propositada e sensivelmente simplificado com a finalidade” de aliviar as empresas estatais “dos encargos e dos ônus burocráticos, que lhes eram impostos no regime constitucional originário”, lembrando que

“Ponderável expressão dos comentaristas das normas licitatórias e de contratação administrativa já haviam reiteradamente observado a desproporcionalidade que resulta da indiscriminada extensão, às empresas do Estado, das regras de controle prévio impostas à sua burocracia, delas resultando o sacrifício de sua competitividade empresarial e o consequentemente encarecimento de seus produtos e serviços, fossem privados ou públicos.[25]

Nessas circunstâncias, continuar a aplicar às sociedades de economia mistas regras especiais e extravagantes que à Emenda Constitucional expressamente afastou parece, realmente, desrespeitar a vontade do legislador constitucional. É muito mais compatível com essa vontade aplicar às sociedades em questão, como defende Diogo Figueiredo, regras de contratação que não observem “senão os princípios constitucionais gerais da administração pública, estabelecidos no art. 37, caput, CF”[26], ou seja, os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Jessé Torres Pereira Junior também defende posição semelhante, recomendando apenas que as empresas estatais editem

“regulamentos próprios, que, não reproduzindo as disposições da lei geral de licitações, já darão cumprimento ao regime delineado pela Emenda 19, estabelecendo regras procedimentais harmoniza- das com os princípios licitatórios, com as particularidades da estrutura organizacional da empresa e com as características dos serviços que presta ou do mercado em que atua.”[27]

Prevalecendo a posição defendida por esses últimos doutrinadores, deixariam de existir quaisquer obstáculos à estipulação de cláusulas compromissórias nos contratos celebrados pôr empresas estatais, já que não mais seria aplicável a esses contratos o art. 55, §2º, da Lei nº 8.666/93.

Ainda sobre esse tema, gostaríamos de comentar a distinção que muitos doutrinadores fazem entre sociedades de economia mista que prestam serviços públicos daquelas que “exploram atividade econômica”.[28] Celso Antonio Bandeira de Mello, por exemplo, entende que o novo estatuto previsto no art. 173, §1º, III, não poderá ser aplicado às estatais prestadoras de serviço público, conforme acima referido.

A origem da polêmica está no fato de que a Constituição manda aplicar o “regime jurídico próprio das empresas privadas”às empresas públicas, sociedades de economia mista “e outras entidades que explorem atividade econômica”. Os doutrinadores antes referidos entendem que esse dispositivo só permite a aplicação do regime privado às sociedades de economia mista “que explorem atividade econômica”, categoria que se distinguiria das sociedades prestadoras de serviço público.

José Edwaldo Tavares Borba e Diogo de Figueiredo[29] fazem uma vigorosa crítica a essa posição, sustentando que toda sociedade de economia mista, inclusive as prestadoras de serviço público, exploram atividade econômica. Para eles a expressão teria sido utilizada pela Constituição para qualificar apenas o termo “outras entidades”, o que seria demonstrável até mesmo pela análise gramatical do texto normativo. A esse respeito, José Edwaldo Tavares Borba acrescenta o seguinte comentário:

“A interpretação lógico-sistemática confirma a interpretação gramatical, uma vez que a sociedade de economia mista e a empresa pública encontram-se legalmente conceituadas como entidades criadas “por lei para a exploração de atividade econômica” (art. 5º, incisos II e III, do Decreto-lei nº 200/67, com a redação decorrente do Decreto-lei nº 900/69).

Assim, a Constituição Federal (art. 173,§1º), ao fazer alusão à sociedade de economia mista e à empresa pública, estava contemplando entidades cuja natureza já lhes determinava a sua condição de entes voltados para a atividade econômica. O art. 173, §1º, em um esforço de generalização, faz referência ainda a ‘outras entidades”, estas sim dependentes de qualificação pela característica da exploração de atividade econômica. E nesse âmbito das “outras entidades”, poderíamos situar toda e qualquer sociedade, comercial ou civil sob o controle do poder público.

As sociedades de economia mista e empresas públicas destinam-se, pois, necessariamente, ao exercício da atividade econômica. E não poderia ser diferente, pois, revestindo a forma de sociedade comercial, daí decorre, como um corolário, o caráter mercantil das atividades desenvolvidas, e bem assim a finalidade lucrativa, que é inerente à mercancia.

As atividades típicas de administração pública deverão ser exercidas pela administração centralizada ou por autarquias, e, em certas circunstâncias, por fundações públicas, jamais por sociedades comerciais.

Isto não significa que os serviços públicos não possam ser concedidos a sociedades de economia mista ou a empresas públicas, como de resto podem ser concedidos a qualquer empresa privada.

As concessionárias privadas de serviços públicos não deixam, por força da concessão, de exercer uma atividade econômica. O serviço público, quando concedido, não deixa, igualmente, de ser um serviço público, mas a concessionária, ao explorá-lo, explora-o com finalidade de lucro, exercendo, portanto, uma atividade econômica.

O governo, ao constituir uma sociedade de economia mista ou uma empresa pública para explorar um serviço público, escolhe uma forma privada de atuação, que tem na exploração da atividade econômica a condição de sua realização. Cabe, pois, afirmar que todas as sociedades de economia mista se destinam ao exercício de atividade econômica.”

Ainda que essa posição nos pareça a mais correta, deve-se reconhecer que ela é minoritária, com o que a prevalência da tese de que a Lei nº 8.666/93 deixou de poder ser aplicada às empresas estatais se revela mais problemática no caso das sociedades de economia mista prestadoras de serviço público.

Convém observar, ainda, a distinção que Diogo Figueiredo faz entre os contratos celebrados pela sociedade de economia mista como “atividade meio” e aqueles celebrados no exercício ordinário de suas atividades empresariais. Diz ele, a esse respeito, o seguinte:

“Ainda assim, observe-se, os certames licitatórios e a disciplina contratual derrogatória do regime geral privado serão obrigatórios para as sociedades de economia mista apenas em quatro hipóteses de. contratação: obras, serviços, compras e alienações (art. 173, 173, §1º, I).

É necessário, por fim, distinguirem-se as hipóteses em que quais- quer desses quatro tipos de contrato serão por elas celebrados como atividade meio, daquelas em que eles foram previstos nas respectivas leis autorizativas como a própria atividade fim, da sociedade de economia mista, uma vez que, neste caso, estaria despida de sentido uma interpretação que as considerasse obrigadas a licitar obras, serviços, compras e alienações que se constituíssem em seu próprio objetivo social.”[30]

Também por essa razão adicional é bem mais tranquila a situação da legalidade da cláusula compromissória nos contratos celebrados por sociedades de economia mista e empresas públicas, não prestadoras de serviço público, no exercício ordinário de suas atividades empresariais. Ainda assim, a existência de opiniões conflitantes entre os doutrinadores faz com que a insegurança jurídica continue a ser sentida.

 

  1. Os contratos firmados sob o regime de algumas Agências Reguladoras.

Parte da legislação especial que criou agências reguladoras relacionadas com a prestação de serviços públicos em alguns importantes setores da economia é bastante explícita quanto à questão da arbitragem. De uma maneira geral, ela determina ser obrigatória, nos correspondentes contratos de concessão, a inserção de cláusula compromissória prevendo a submissão à arbitragem dos eventuais conflitos entre concessionário e Poder Concedente.

O art. 93, XV, da Lei nº 9.472/97, por exemplo, determina que, no setor de telecomunicações, o contrato de concessão deve conter cláusula que contemple “o foro e o modo para solução extrajudicial das divergências contratuais.”

No mesmo sentido, a Lei nº 9.478/97, que dispõe sobre a política energética nacional, instituindo a Agência Nacional do Petróleo (ANP), determina que os contratos de concessão celebrados para a prestação de serviços ligados à indústria do petróleo contenham cláusulas de arbitragem. O art. 43, X, da mencionada lei aponta como cláusula essencial o estabelecimento de “regras sobre solução de controvérsias, relacionadas com o contrato e a sua execução, inclusive a conciliação e arbitragem internacional.

Veja-se ainda a legislação pertinente à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e à Agência Nacional dos Transportes Marítimos (ANTAQ), segundo a qual tanto os contratos de concessão como os de permissão celebrados em suas respectivas áreas de regulamentação devem conter cláusula que prescreva a utilização da arbitragem.

Com efeito, o art. 35, XVI, da Lei nº 10.233/01, que instituiu as duas agências, determina que dos contratos de concessão deverão obrigatoriamente constar “regras sobre a solução de controvérsias relacionadas com o contrato e sua execução, inclusive a conciliação e a arbitragem”.[31]

Assim, graças aos referidos diplomas legais, não existem nessas áreas as dificuldades discutidas nos itens anteriores para a admissão do recurso à arbitragem nos contratos administrativos. Existem, porém, em conexão com o tema, dificuldades de natureza diversa, que também geram insegurança jurídica e prejudicam o normal fluxo de investimentos estrangeiros para o país.

Em alguns casos essa legislação utiliza indevidamente a expressão “arbitragem” para se referir a situações que com ela não se confundem. Por outro lado, em um caso, foi também criada a figura da arbitragem de adoção compulsória em contratos entre pessoas privadas, cuja constitucionalidade é bastante duvidosa.

No exercício de seu poder de controle sobre as atividades relacionadas com os serviços públicos concedidos, as Agências Reguladoras têm, naturalmente, a atribuição de compor eventuais conflitos que surjam entre os agentes econômicos que estejam sob sua esfera de competência. Essa composição dos conflitos, porém, deve se dar no curso de um processo administrativo que não pode ser confundido com o processo de arbitragem, pois a decisão da Agência, nesses casos, sempre poderá ser amplamente revista pelo Poder Judiciário, o que não ocorre na arbitragem. O afastamento da competência do Judiciário para examinar o mérito dos conflitos somente pode ter por origem o livre consentimento das partes, inexistente na hipótese.

Por isso, não são precisos nem corretos os vários dispositivos legais e regulamentares que chamam de “arbitragem” essa com- posição administrativa de conflitos pelas Agências Reguladoras. O art. 19 do Decreto nº 2.455/98 é um desses dispositivos. Ele relaciona entre as competências da ANP, a solução de conflitos através de conciliação ou arbitramento:

“Art. 19. A atuação da ANP, para a finalidade prevista no art. 20 da Lei nº 9.478, de 1997, será exercida mediante conciliação ou arbitramento, de forma a:

I — dirimir as divergências entre os agentes econômicos e entre estes e os consumidores e usuários de bens e serviços da indústria do petróleo;

II — resolver conflitos decorrentes da ação de regulação, contratação e fiscalização no âmbito da indústria do petróleo e da distribuição e revenda de derivados de petróleo e o álcool combustível;

III — prevenir a ocorrência de divergências;

IV — proferir a decisão final no campo administrativo, com força determinativa, em caso de não entendimento entre as partes envolvidas;

V — utilizar os casos mediados como subsídios para a regulação.”

No caso da Agência Nacional de Serviços de Correios — ANAPOST, cuja criação ainda está pendente de aprovação no Congresso Nacional, o Projeto de Lei nº 1.491/99, que trata do Sistema Nacional de Correios, estabelece em seu art. 17, §2º, que, em caso de conflito entre os operadores das redes físicas que compõe a estrutura do referido sistema “caberá ao órgão regulador [ANAPOST] definir a questão por meio de arbitragem.

Essa atribuição da Agência Nacional de Serviços de Correios é reforçada pela redação do art. 130, XXIX, que lhe atribui a competência para “compor administrativamente ou resolver por meio de arbitragem os conflitos de interesses entre operadores.”

Além disso, conforme mencionado, em ao menos um caso, a legislação das Agência Reguladoras procura instituir uma espécie de arbitragem obrigatória nos relacionamentos contratuais estabelecidos entre os agentes submetidos a sua jurisdição. Trata-se da Lei nº. 10.433/2002, que dispôs sobre a reestruturação do setor elétrico e cujo art. 2º, §3º, estabelece que “[a] forma de solução das eventuais divergências entre os agentes integrantes do MAE será estabelecida na Convenção de Mercado e no estatuto, que contemplarão e regulamentarão mecanismo e convenção de arbitragem, a eles se aplicando os arts. 267, inciso VII; 301, inciso IX; 520, inciso VI; e 584, inciso III, do Código de Processo Civil.”

Com amparo nesse dispositivo legal, a Resolução ANEEL nº73/2002, em seu art. 35, determina que: “Os agentes do MAE, em virtude da elevada especificidade do mercado e dos elementos que se afiguram como potenciais fontes de controvérsia e litígio, para a solução de conflitos, deverão celebrar, em um prazo de 30 (trinta) dias a contar da publicação da Convenção definitiva do MAE, uma Convenção Arbitral adotando processo de arbitragem e, para tanto, instituir seu respectivo Regulamento.”

Convém observar que os “agentes do MAE” são, em grande medida, empresas privadas com atuação no setor elétrico e que os contratos onde haveria a obrigatória inserção da cláusula com- promissória são celebrados entre essas empresas, no exercício de suas atividades negociais. Pode a Lei, ou uma Agência Reguladora, impor a partes privadas, contra sua vontade, a obrigação de submeter seus conflitos à arbitragem, com afastamento da possibilidade de exame de mérito das questões pelo Poder Judiciário?

É evidentemente problemático conciliar essa determinação legislativa com a categórica proibição contida no inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal, segundo a qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Esse dispositivo foi intensamente debatido na discussão sobre a constitucionalidade da Lei de Arbitragem, tendo o Supremo firmado a posição de que não o viola a lei que se limita a dar efetividade a obrigação livremente assumida pela parte de não recorrer ao Judiciário para o exame dos conflitos que possam surgir no âmbito de uma específica relação jurídica.

O Supremo entendeu que a proibição contida no dispositivo constitucional não se dirige aos cidadãos, que estão livres para se comprometerem a recorrer a um árbitro privado de sua escolha para a solução de seus conflitos. Pela decisão do Supremo, porém, o dispositivo constitucional continua se dirigindo ao legislador, que continua não podendo criar tribunais de exceção, à margem do Poder Judiciário, obrigando os cidadãos a se submeterem a tais tribunais, contra sua vontade e sem recurso ao Judiciário. E esse parece ser, justamente, o caso dos dispositivos legais e regulamentares em questão.

Não é apenas a insegurança quanto à possibilidade de utilização da arbitragem que cria dificuldades para o bom funciona- mento da economia. O mal emprego do instituto também é deletério, pois gera confusão e instabilidade jurídica.

 

  1. Conclusão.

O Brasil deu, nos últimos anos, passos gigantescos no sentido de reverter uma cultura jurídica arraigada, que era contrária à efetiva implantação e desenvolvimento da arbitragem. Muito foi conseguido, mas ainda há muito por fazer. E o que ocorre com a arbitragem nos contratos administrativos, onde a legalidade da adoção da cláusula compromissória, salvo por algumas honrosas exceções, referidas acima, não chega a ser inteiramente clara, e continua sendo passível de incômodos questionamentos.

Sendo essa uma área de fundamental importância para a economia, é de toda conveniência que a possibilidade de utilização da arbitragem nos contratos administrativos seja estabelecida de forma inequívoca, com afastamento definitivo das dúvidas hoje existentes. Isso poderá se dar através de um lento processo de construção jurisprudencial ou, mais rapidamente, mediante alteração legislativa, alternativa que, dada a urgência do tema, é, em nossa opinião, a mais recomendável.

 

[1] Sentença Estrangeira nº 5206, j. 12/12/2001.

[2] Vide, dentre outros: Eros Roberto Grau. “Arbitragem e Contrato Administrativo”. Revista Trimestral de Direito Público nº 35, 2000; pp.14 e ss.; Mauro Roberto Gomes de Mattos. O Contrato Administrativo. Rio: América Jurídica, 2ª ed., 2002; pp.449 e ss.; Carlos Alberto Carmona, Arbitragem e Processo – Um comentário à Lei 9.307/96, São Paulo, Malheiros, 1998; p. 54/55; Adílson Abreu Dallari. “Arbitragem na Concessão de Servilço Público”. Revista Trimestral de Direito Público nº 13, 1996; pp. 5 e ss.; e Arnoldo Wald. O Direito de Parceria e a Nova lei de Concessões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996; p. 140.

[3] Agravo de Instrumento nº 52181/GB, rel. Min. Bilac Pinto.

[4] Havia um dispositivo semelhante no Decreto- Lei nº 2.300/86, o parágrafo único do art. 45, que previa a obrigatória eleição do foro do Distrito Federal nos “contratos celebrados pela União ou suas autarquias com pessoas físicas ou jurídicas domiciliadas no exterior. Além de ter aplicação muito mais restrita, esse dispositivo também é posterior ao caso Laje.

[5] Jessé Torres Pereira Júnior. Comentário à Lei das Licitações e Contratações da Administração Pública. Rio: Renovar, 3ª ed., 1995; p. 349.

[6] Trecho retirado do texto do art. 4º da Lei nº 9.307/96.

[7] Carlos Alberto Carmona, Arbitragem e Processo – Um Comentário à Lei 9.307/96, São Paulo, Malheiros; p. 54-55.

[8] De Plácido e Silva. Vocabulário Jurídico. Rio, Forense, 4ª ed., 1975, tomo II; p. 714.

[9] Ainda que, como em cima Clávio Valença Filho “por nao estar o árbitro inserido na organização jurídica do Estado e por retirar os seus poderes diretamente da vontade das partes, se torna tecnicamente impossível falar em foro da arbitragem.” “Arbitragem e Contratos Administrativos”. Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais da Arbitragem nº 8, abr/jun-2000; pp. 371/372.

[10] Márcia Walquiria Batista dos Santos. “Licitação internacional. Proibição de previsão de juízo arbitral”, in Maria Sylvia Di Pietro, et all., Temas Polêmicos sobre licitações e Contratos. São Paulo: Malheiros, 4ª ed., 1999; pp. 255/257.

[11] Idem, p. 256.

[12] Adilson Abreu Dallari. “Arbitragem na Concessão de Serviço Público”. Revista Trimestral de Direito Público, nº 13, 1996; pp. 7/8.

[13] Arnoldo Wald. O Direito de Parceria e a Nova lei de Concessões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996; p. 140.

[14] Decisão do Conselho Especial do TJDF de 18.05.1999, relatora a entao Desembargadora Federal, hoje Ministra do STJ, Nancy Andrighi, citada e comentada por Clávio Valença Filho. “Arbitragem de Contratos Administrativos”. Revista do Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, nº 8, abr/jun- 2000, pp. 371/372.

[15] Processo nº TC nº 006.0986/93-2, Rel. Min. Paulo Affonso Martins de Oliveira, Decisão nº 188/95.

[16] Ob. cit., páginas 371 e 372.

[17] O caráter contractual das decisões proferidas em métodos amigáveis é ressaltado por João Baptista de Mello e Souza Neto, segundo o qual “[a] decisão obtida com a mediação judicial tem mais probabilidade de conseguir resultado eficiente com a chamada barganha de interesse, obtendo ‘soluções integrativas que satisfaçam o maior número possível das necessidades de ambas as partes. ‘ ”(in: Mediação em Juízo. São Paulo, Atlas, 2000; p. 53).

[18] Carlos Alberto Carmona, Arbitragem e Processo – Um Comentário à Lei 9.307/96, São Paulo, Malheiros, 1998; p. 54/55.

[19] Maria Sylvia Di Pietro. “Empresa subisidiária de sociedade de economia mista. Submissão à Lei nº 8.666” in Maria Sylvia Di Pietro et all. Temas Polêmicos sobre Licitações e Contratos. São Paulo: Malheiros, 4ª ed., 1999; pp. 28/29.

[20] Idem; p. 29.

[21] Celso Antonio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 14ª ed., 2002; p. 195.

[22] Processo nº 06.176/2001-5, Rel. Min. Ubiratan Aguiar, Decisão nº 663/2002.

[23] Diogo Figueiredo Moreira Neto. “Sociedade de Economia Mista e forma Administrativa”. Revista do Direito Administrativo, nº 217, jul-set/1999; p. 94.

[24]

[25] Ob. cit., ibidem.

[26] Ob. cit., ibidem.

[27] Jessé Torres Pereira Júnior. Da Reforma Administrativa Constitucional. Rio: Renovar, 1999; p. 375.

[28] Afirmando a distinção entre sociedades de economia mista que prestam serviços públicos daquelas que desempenham atividade econômicas, vide: Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 2002, 27ª ed.; p. 358; Celso Antonio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo. São Paulo, Malheiros, 2002, 14ª ed; pp. 177 e ss. Odeth Medauar. Direito Administrativo Moderno. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002, 6ª ed.; p. 109; Toshio Mukai. Direito Administrativo Sistematizado. São Paulo, Saraiva, 2000, 2ª ed.; p. 36; e José Cretella Júnior. Direito Administrativo Brasileiro. Rio, Forense, 1999; p. 166.

[29] José Edwaldo Tavares Borba, Sociedade de Economia Mista e Privatização, Rio: Lumen Juris, 1997, p. 95/97 e Diogo Figueiredo, ob. cit., pp. 96/100. Na mesma direção, José dos Santos Carvalho Filho entende que “atividade econômica” é “expressão genérica”, que abrange também a prestação de serviços públicos (in Manual de Direito Administrativo. Rio, Lumem Juris, 1999, 4ª ed.; p. 328).

[30] Ob. cit., ibidem.

[31] O art. 38, XI, da Lei 10.233/01 determina igual tratamento para as permissões, com idêntica redação.