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Americanas: como os investidores lesados podem buscar reparação
Joaquim Simões Barbosa
O episódio das inconsistências contábeis da Americanas espalhou prejuízos para todos os lados: credores, fornecedores, empregados, todos terão pesadas perdas como consequência desse lamentável acontecimento. Com nenhuma outra categoria de agente, porém, o prejuízo foi mais imediato, profundo e claro do que com a categoria dos investidores do mercado de capitais, que aplicaram suas poupanças em títulos de emissão da varejista brasileira, especialmente ações.
As ações da Americanas eram tidas como blue chips. Apesar de o mercado não estar favorável à atividade varejista, o título chegou a ser cotado a R$ 35,86 em fevereiro do ano passado. Após a divulgação dos problemas contábeis, passou a ser negociado por R$ 1,00. O valor do ativo foi literalmente pulverizado de um dia para o outro como consequência direta e inequívoca do problema detectado nas contas da companhia aberta. Quem tinha dinheiro investido em ações da empresa praticamente perdeu tudo.
A aplicação em ações é uma modalidade de investimento de risco, mas os investidores têm direito a contar com algumas garantias básicas. O setor da economia em que atua a empresa pode prosperar ou retroceder, a administração pode ser mais ou menos eficiente na condução das operações, a economia pode entrar em recessão. Tudo isso afeta os lucros e o valor da empresa, sendo um risco assumido pelo investidor. A lei impõe, porém, às empresas que buscam recursos no mercado de capitais a obrigação de divulgar informações corretas e completas sobre todos os aspectos relevantes de suas atividades, especialmente sobre sua situação financeira.
Uma queda abrupta no valor da ação causada pela descoberta de que as demonstrações financeiras da empresa continham gravíssimos erros não é um dos riscos assumidos pelo investidor do mercado de capitais. Trata-se de prejuízo injusto que lhe foi ilicitamente imposto por quem tinha o dever legal de garantir a divulgação de informações fidedignas e confiáveis. É uma situação típica que faz surgir aquilo que, em direito, chamamos de responsabilidade civil: alguém quebra um dever jurídico a que está sujeito, praticando um ato ilícito e causando prejuízo a um terceiro, tornando-se, em consequência, responsável pela reparação do dano.
De certa forma, a própria Americanas também foi vítima da ação ilegal de seus administradores (e talvez controladores). Eles eram os responsáveis pela elaboração das demonstrações financeiras e foi a falha no desempenho dessa tarefa que lançou a empresa na terrível situação em que se encontra, com sua própria viabilidade empresarial posta em dúvida. A empresa sofreu um prejuízo, que, de forma indireta, afeta também os seus acionistas.
Existe, porém, um princípio muito caro ao direito societário segundo o qual o sócio não tem legitimidade para propor uma ação com o objetivo de haver o prejuízo indireto que tenha sofrido por força de um prejuízo sofrido primeiramente pela sociedade da qual participa. O motivo dessa regra é a proteção de credores e o regime jurídico do capital social. Se fosse permitida essa indenização, haveria uma quebra do princípio da realidade do capital social, pois recursos que deveriam pertencer à sociedade (a indenização pelo prejuízo que ela sofreu) estariam sendo desviados para seus sócios, em prejuízo dos credores. Por isso, a lei criou a chamada ação derivativa, em que permite ao acionista substituir processualmente a sociedade em certas circunstâncias, buscando a indenização para a sociedade e não para o autor da ação. É o caso das ações contra o controlador do art. 246 e contra os administradores do art. 159, ambos da Lei das Sociedades Anônimas.
No episódio da Americanas, certamente haveria a possibilidade de propositura ao menos da ação contra os administradores e, muito provavelmente, também contra os controladores. Porém, essas são ações bastante problemáticas. Basta dizer que, para o autor não ter que prestar uma caução milionária já na propositura da ação, seria necessário reunir acionistas representando pelo menos 5% do capital, o que não é fácil. Além disso os riscos envolvidos seriam elevadíssimos e a experiência mostra que os tribunais têm alguma má vontade com essa modalidade de ação.
Por isso, esse não é o caminho preferencial sugerido neste artigo para obtenção de ressarcimento pelos investidores lesados. A sugestão aqui é no sentido de que os milhares de investidores que compraram ações por uma cotação elevada acreditando nas demonstrações financeiras da sociedade e acabaram tendo que vendê-las com grande prejuízo depois que veio a ser revelado que essas demonstrações estavam grosseiramente incorretas busquem a reparação pelo prejuízo direto que sofreram junto à própria sociedade com base no art. 927 do Código Civil.
Os investidores devem incluir no polo passivo da demanda outras pessoas que também tinham o dever legal de zelar pela correção das demonstrações financeiras e falharam culposamente no exercício desse dever, como parece ser o caso das empresas de auditoria que reviram os documentos contábeis e deixaram escapar erro tão relevante, atestando equivocadamente a correção das demonstrações, não uma única vez, mas, aparentemente, por anos a fio. Isso pode vir a ser importante para garantir o efetivo ressarcimento dos prejuízos, tendo em vista que a situação financeira da Americanas é delicada e a empresa pode vir a não ter condições para saldar sozinha as futuras eventuais condenações.
Resta saber se a ação aqui sugerida deveria ser proposta perante o Poder Judiciário ou se a hipótese faz incidir a cláusula de arbitragem prevista no estatuto social da empresa. Como participante do segmento especial de listagem da B3 denominado Novo Mercado, a Americanas tem em seu estatuto social cláusula prevendo que a companhia, seus acionistas e administradores se obrigam a resolver, por meio de arbitragem, perante a Câmara de Arbitragem do Mercado, “qualquer controvérsia que possa surgir entre eles, relacionada com ou oriunda de sua condição de (…) acionistas”. A arbitragem é um método alternativo de solução de litígios em que a decisão cabe a juízes privados. Se a cláusula de arbitragem do estatuto da Americanas tiver aplicação ao caso, qualquer ação que seja iniciada em Juízo deverá ser extinta sem julgamento do mérito e as partes remetidas à arbitragem.
A questão ainda comporta análise mais aprofundada, mas, em princípio, a cláusula de arbitragem não parece ter aplicação, pois a controvérsia não estaria relacionada ou seria oriunda da condição de acionista do investidor. A ação é de um investidor, participante do mercado de capitais, contra a emissora de um título (que poderia ser de dívida) que deixou de dar cumprimento a obrigações inerentes a essa sua condição. A condição relevante para a propositura da demanda é a de adquirente/alienante do título, não propriamente a de acionista. Tanto que o investidor/ autor não era acionista nem quando a ré praticou o ato ilícito (já que a divulgação das demonstrações financeiras incorretas tem que ter precedido a aquisição dos títulos para que a ação seja viável) nem quando a medida judicial foi proposta (pois o prejuízo cujo ressarcimento o investidor pede veio a ser consumado justamente com a alienação dos mesmos títulos).
De uma forma ou de outra, os investidores assim prejudicados têm direito a ver seus prejuízos indenizados.