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Teria a ANEEL Criado um Tribunal de Exceção?
Joaquim Simões Barbosa
In: Gazeta Mercantil – 03/2002
Há muito tempo os países mais desenvolvidos e civilizados utilizam a arbitragem comercial como meio alternativo de solução de conflitos. As qualidades dessa alternativa privada à Justiça estatal são notórias e se encontram comprovadas de forma inequívoca por sua intensa e duradoura prática, ocorrida com grande sucesso nesses importantes países.
Com a arbitragem, a composição do conflito se torna menos traumática porque feita na forma consensualmente adotada pelas partes. Os árbitros têm as qualificações e experiência mais recomendáveis para o exame do caso porque são escolhidos especificamente para nele atuar, sendo essa qualificação especial do julgador muito importante no mundo de hoje, onde os negócios são cada vez mais sofisticados, não se podendo esperar encontrá-la em uma Justiça estatal sufocada por verdadeira avalanche de questões rotineiras. Os árbitros não têm essa sobrecarga de casos e podem decidir de forma rápida.
Tudo isso virou até mesmo lugar comum após os debates que foram suscitados pela edição, em 1996, da nova lei brasileira de arbitragem, que veio afastar os obstáculos que historicamente impediram a utilização efetiva desse instituto em nosso país. A nova lei foi finalmente considerada constitucional pelo Supremo e a arbitragem entrou na moda. Moda que tem tudo para ser duradoura e benfazeja, haja visto o que ocorreu em tantos outros países que compartilham conosco os mesmos valores jurídicos e econômicos fundamentais.
Mas, diz o ditado popular que “quem nunca comeu melado quando come se lambuza” e esse pode estar sendo o caso do Brasil com a arbitragem. Privados que fomos, por tanto tempo, desse importante instituto, agora queremos a arbitragem a qualquer custo. E, em alguns casos, penso, se está ultrapassando os limites do que é possível e, até mesmo, desejável.
A Medida Provisória nº 29, de 07/02/2002, e a Resolução ANEEL nº 73, de 08/02/2002, constituem um bom exemplo desse tipo de excesso.
Os referidos diplomas fazem parte do esforço governamental de reformulação do setor elétrico após a crise que desembocou no racionamento de energia. Entre as medidas neles previstas está a criação de uma Câmara de Arbitragem do Mercado Atacadista de Energia Elétrica — MAE que terá seu próprio regulamento e corpo de árbitros.
Quem já teve a oportunidade de trabalhar com o setor elétrico sabe da imensa complexidade das questões que surgem no seu âmbito, o que torna a adoção da arbitragem para dirimir os conflitos entre os agentes que atuam nesse especialíssimo mercado uma medida altamente saudável e recomendável. E a criação de uma Câmara de Arbitragem especializada na matéria é algo que também faz todo o sentido.
O problema, portanto, não está na criação da Câmara de Arbitragem do MAE. O problema é que a Medida Provisória e a Resolução da ANEEL impõem aos agentes do setor a obrigação de aceitarem submeter àquela Câmara os conflitos que venham a surgir entre eles no exercício de suas atividades, renunciando, consequentemente, ao direito de submeter a apreciação do mérito dessas questões ao Poder Judiciário. E isso é ilícito porque as partes podem livremente aceitar assumir essa obrigação, mas nem a Lei, nem muito menos uma Agência Governamental, podem impor essa obrigação contra a vontade das partes.
O inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal estabelece que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito”. Esse dispositivo foi muito debatido nas discussões sobre a nova lei de arbitragem e o Supremo acabou firmando a posição, louvada por todos, de que não viola o princípio constitucional a lei que dá efetividade à obrigação livremente assumida pelas partes de não recorrer ao Judiciário para o exame do mérito dos conflitos que possam surgir entre elas no âmbito de um contrato específico.
Isso porque a proibição contida no dispositivo constitucional não se dirige aos cidadãos, que estão livres para se comprometerem a recorrer a um árbitro privado de sua escolha para a solução de seus conflitos. Quem está limitado pelo dispositivo constitucional é o legislador, que não pode criar tribunais de exceção, à margem do Poder Judiciário, obrigando os cidadãos a se submeterem a tais tribunais, contra sua vontade e sem recurso ao Judiciário.
E a Câmara de Arbitragem do MAE se enquadra nessa categoria dos tribunais de exceção? Parece claro que nem o governo nem a ANEEL tiveram essa intenção. Mas a verdade é que, objetivamente, a distinção entre um espúrio tribunal de exceção e um legítimo tribunal arbitral deve ser buscada na origem da autoridade do tribunal para compor o conflito. Se o tribunal receber essa autoridade diretamente das partes mediante seu consentimento expresso e livre, ele é um legítimo tribunal arbitral. Se sua autoridade for imposta pela lei, contra a vontade das partes, ele é um tribunal de exceção, que viola a garantia constitucional de acesso ao Judiciário, sendo, portanto, ilícito e espúrio. Infelizmente, esse parece ser o caso da referida Câmara de Arbitragem.
Há, como já foi dito, uma grande conveniência de se submeter os conflitos do setor elétrico à arbitragem por pessoas com os conhecimentos técnicos necessários. Mas isso deve ser feito por iniciativa dos próprios agentes, sem imposições do Poder Público. Em um Estado de Direito os fins não justificam os meios. Os fins justos e necessários devem ser perseguidos, mas da forma certa, ainda que mais trabalhosa e complexa.