L O A D I N G

Usurpação mineral e critérios de indenização

Julgamento em sede de IRDR pode pôr fim à discussão no âmbito do TRF4

Publicado originalmente  em: Jota.info

Conforme estabelecido no art. 20, inciso IX, da Constituição de 1988, a propriedade mineral submete-se ao regime da dominialidade pública, integrando o patrimônio exclusivo da União Federal.

Desde a Constituição de 1934, o sistema de dominialidade dos recursos minerais estabeleceu o regime de separação jurídica entre a propriedade do solo e do subsolo, em lavra ou não. O diploma vigente, em seu art. 176, manteve a dissociação, de forma que o particular responsável pelo aproveitamento do recurso mineral atua como concessionário da União, sendo-lhe garantida a propriedade do produto da lavra.

No âmbito infraconstitucional, o Código de Mineração (Decreto 227/67), logo em seu art. 1°, designa à União a competência de administrar os recursos minerais, a indústria de produção mineral, a distribuição, o comércio e o consumo de produtos minerais.

Na qualidade de concessionário, as atividades do particular devem observar as regras de direito público que lhe são impostas em razão do aproveitamento de bens da União. Logo, a produção de bens ou a exploração de matérias-primas pertencentes à União, sem a autorização legal ou em desacordo com o título autorizativo, constitui crime contra o patrimônio, na modalidade de usurpação (art. 2° da Lei 8.176/1991).

Um dos principais instrumentos processuais que a União pode utilizar em casos de usurpação é a Ação Civil Pública, cujo objetivo é, em essência, buscar o ressarcimento pelos danos causados. Nesse cenário, emerge uma das questões mais debatidas – recentemente examinada pelo TRF4 (Tema 27) em sede de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) – a saber: qual o critério a ser adotado para a valoração da indenização que deve ser paga à União em decorrência da extração ilegal de minério?

É certo que, nos termos da Lei 13.575/2017[1], se a usurpação for identificada antes da comercialização do minério, a Agência Nacional de Mineração (ANM) poderá apreender, destruir ou doar as substâncias minerais e os equipamentos a instituições públicas. Além disso, a ANM também tem a prerrogativa de leiloar esses itens, ficando com o valor obtido com a venda. No entanto, se a usurpação tornar conhecida após a comercialização dos minerais, surge uma controvérsia sobre a métrica a ser utilizada para avaliar a indenização devida à União.

A Ação Civil Pública representativa do IRDR acima mencionado foi ajuizada pela União em face de uma empresa que havia sido autuada pelo antigo Departamento Nacional de Produção Mineral (atual ANM) em razão de extração de saibro fora dos limites da poligonal autorizada, configurando a usurpação de bem de dominialidade da União.

Na ação, a Advocacia-Geral da União (AGU), fundamentando-se em uma Nota Técnica do DNPM, requereu a condenação da empresa ao pagamento de uma indenização calculada com base no preço médio da substância mineral no mercado do Rio Grande do Sul (local da extração), que era de R$ 8 por tonelada, considerando o total de 44.580 toneladas de saibro extraídas irregularmente.

A AGU sustentou que a indenização deve refletir integralmente o valor de mercado do minério, uma vez que a expropriação do patrimônio público mineral impede que a coletividade se beneficie de seu aproveitamento. Além disso, destacou que a empresa ré, ao optar por atividades ilícitas, deve arcar com os riscos financeiros decorrentes de sua conduta, não tendo direito a compensações pelos custos de extração.

Embora a empresa ré não tenha apresentado contestação, resultando em sua revelia, a 2ª Vara Federal de Pelotas julgou parcialmente procedente o pedido da União. O tribunal decidiu que, do valor a ser indenizado, deveria ser descontado o custo médio de extração do mineral, a ser apurado em liquidação de sentença.

Essa decisão baseou-se no entendimento do magistrado e em precedentes da 4ª Turma do TRF4, que afirmam que os recursos obtidos pela empresa não refletem o exato valor do bem usurpado, uma vez que nesses recursos estão embutidas despesas com a extração, com o beneficiamento, transporte e venda do minério.

Isso significa que o preço de mercado reflete não apenas o valor do mineral em si, mas também o valor adicional que lhe é atribuído. Assim, calcular a indenização com base no valor final do produto poderia resultar em enriquecimento sem causa para a União.

No âmbito recursal, a União suscitou a instauração de IRDR, buscando a fixação da tese segundo a qual a “indenização da União pelo dano decorrente da lavra ilegal deve ser integral e calculada com base no valor de mercado do respectivo minério usurpado”. Conforme defende a AGU, o ressarcimento integral é plenamente aceito na 3ª Turma do TRF4, entretanto, na 4ª Turma, o entendimento é diverso: o valor indenizatório, aplicando-se a razoabilidade e a proporcionalidade, equivale a 50% do proveito econômico obtido com a lavra ilegal.

O IRDR é um incidente processual que, ao julgar um caso piloto, estabelece um precedente com eficácia vinculante, garantindo que casos semelhantes recebam a mesma solução. Instituído no Brasil pelo Código de Processo Civil de 2015, o IRDR caracteriza-se como um importante instrumento para a gestão e julgamento de causas repetitivas, com o objetivo de garantir um tratamento prioritário, adequado e racional[2], permitindo que questões jurídicas repetidas em diferentes processos sejam decididas de modo uniforme, evitando divergências dentro do mesmo tribunal.

De fato, as métricas para o cálculo das indenizações têm interpretações variadas, não apenas no TRF4, mas também em outros tribunais brasileiros. Conforme levantamento[3], é possível constatar a existência de, ao menos, 12 diferentes métricas para cálculo do valor indenizatório: (i) Faturamento da empresa; (ii) Lucro da empresa; (iii) CFEM (Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais); (iv) Lucro menos CFEM recolhida; (v) Lucro mais valor do minério em seu estado natural; (vi) Valor do minério em seu estado natural; (vii) 50% do faturamento; (viii) 50% do faturamento mais CFEM não recolhida; (ix) Faturamento menos CFEM recolhida; (x) Faturamento menos CFEM recolhida; (xi) Faturamento menos CFEM recolhida menos despesas; e (xii) Faturamento menos CFEM recolhida menos despesas de transporte e seguros.

No julgamento do IRDR, realizado em 12 de setembro de 2024, a tese estabelecida por unanimidade foi de que “a indenização resultante da extração irregular de minérios deve refletir o valor total de mercado dos minérios extraídos de forma irregular”. Assim, em virtude de sua eficácia vinculante, essa tese deverá ser aplicada a todas as ações que buscam indenização da União por usurpação mineral no âmbito territorial do TRF4 (Região Sul).

Pode-se concluir que os precedentes da 4ª Turma do TRF4, que permitiam a redução da indenização devido aos custos associados à extração, embora favorecessem os usurpadores, buscavam seguir a lógica de que a indenização deve refletir o valor real do bem pertencente à União. Assim, ao considerar o preço de mercado do mineral, acaba-se por agregar valor ao bem usurpado, uma vez que nesse preço estão incluídos todos os custos de extração e de beneficiamento do mineral, tal valorização, por óbvio, não faz parte do patrimônio público.

Além disso, se levarmos em conta que a CFEM (Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais), conforme a Lei 7.990/1989, é a única compensação devida à União pela exploração mineral, seu valor poderia ser considerado a indenização exata a ser paga em caso de usurpação (sem confundir com eventual dano ambiental). Afinal, esse valor representa o que a União deveria receber com o aproveitamento do mineral.

Contudo, as decisões judiciais também refletem escolhas, mesmo que indiretamente.

Nesse sentido, a adoção, pela tese fixada em IRDR, de parâmetros mais rígidos para precificação da indenização transcende o mero aspecto financeiro/econômico, fomentando o caráter pedagógico-punitivo das sanções.

Inclusive, esse tem sido o entendimento do Superior Tribunal de Justiça[4] ao decidir casos de usurpações minerais, sob pena de incentivar a impunidade das empresas infratores[5]. É importante destacar que, nessa mesma linha de combate à usurpação mineral, o Supremo Tribunal Federal, em setembro do ano passado, estabeleceu, em repercussão geral, que “a pretensão de ressarcimento ao erário decorrente da exploração irregular do patrimônio mineral da União é imprescritível, uma vez que está indissociavelmente ligada ao dano ambiental causado”.

O Tema 27 do TRF4 ainda pode ser objeto de Recurso Especial ou Extraordinário. No entanto, dado que a empresa ré teve sua revelia decretada e levando em conta as recentes decisões do STJ e do STF mencionadas anteriormente, é improvável que o cenário se modifique.

[1]Art. 2º, inciso XXVII, Art. 13, inciso V e Art. 19, inciso VIII.

[2]DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: o processo civil nos tribunais, recursos, ações de competência originária de tribunal equerela nullitatis, incidentes de competência originária de tribunal./Fredie Didier Jr., Leonardo Carneiro da Cunha. 13. ed. v. 3, reformada. Salvador: JusPodivm, 2016. p. 590; 644.

[3]VILELA, Otávio. FARIA, Ana Maria Damasceno de Carvalho. A indenização devida à União em caso de usurpação mineral e o IRDR tema nº 27 do TRF4.E-Civitas, v. 15, n. 2, p. 179-209, 2023.

[4]Nesse sentido: AREsp n. 2.015.266/RS, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 10/5/2022, DJe de 20/6/2022; AgInt no AREsp n. 1.893.855/SC, relator Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, julgado em 21/6/2022, DJe de 30/6/2022; AREsp n. 1.676.242/SC, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 24/11/2020, DJe de 1/12/2020. AREsp n. 1.520.373/SC, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 10/12/2019, DJe de 13/12/2019.

[5]Nos dizeres do Ministro Francisco Falcão:“perfilhar do mesmo entendimento da recorrente, de que o valor da condenação pela lavra irregular de minério deveria corresponder ao valor do produto in natura, com a dedução das despesas com o beneficiamento e venda da rocha (mão-de obra, insumos, impostos, etc.), seria o mesmo que admitir que a administração pública estaria compelida a indenizar os custos que o autuado teve que suportar com o cometimento da infração ambiental, dolosa ou culposamente praticada com a lavra ilegal de minério”.STJ – AgInt nos EDcl no REsp: 1987343 MG 2022/0050332-8, Relator: Ministro FRANCISCO FALCÃO, Data de Julgamento: 20/03/2023, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 24/03/2023.