Um retrato do uso da IA na produção de provas na arbitragem
Flavia Cristofaro
Agosto de 2025
Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/438773/um-retrato-do-uso-da-ia-na-producao-de-provas-na-arbitragem
Escrever sobre o uso da IA – inteligência artificial em qualquer atividade deve ser comparado a tirar uma fotografia: ambas as ações retratam um momento específico, refletem a efemeridade de algo que pode se modificar no instante seguinte.
Não é diferente do uso da IA na fase de produção de provas na arbitragem. Assim, a análise aqui proposta apresenta uma breve reflexão do estágio atual, sendo esperado que a evolução da IA e o crescimento exponencial da sua utilização tragam muitas novidades e modifiquem o cenário deste momento e as conclusões pontuais aqui desenvolvidas.
Se, de um lado, a IA não pode substituir o árbitro em sua função de decidir1, segundo a qualificação que lhe é atribuída pela lei 9.307/19962, ela já vem sendo amplamente usada na produção de provas, trazendo muitas vantagens e garantindo celeridade a essa fase do procedimento arbitral. No entanto, ainda existem pontos de atenção, alguns decorrentes do próprio estágio de desenvolvimento da IA, outros ligados a características inerentes à arbitragem, que devem ser cautelosamente sopesados nessa utilização.
A rapidez é uma vantagem que salta na frente quando pensamos no uso da IA na produção de provas em um procedimento arbitral. Os algoritmos têm a capacidade de filtrar, classificar e resumir milhões de documentos em poucas horas. Com isso, ambas as partes economizam tempo, tanto a parte que vai selecionar a prova documental a ser produzida, quanto aquela que vai examinar os documentos apresentados. Esse ganho de tempo também pode beneficiar a prova pericial e otimizar o trabalho de peritos e assistentes técnicos. A redução do volume de revisão humana pode acarretar, ainda, uma redução marginal dos custos envolvidos nessa atividade.
No entanto, se é o árbitro que pretende usar a IA para examinar a prova documental ou pericial, essa utilização deve ser cuidadosa e limitada, não podendo substituir a interpretação da prova a ser feita pelo próprio árbitro, na medida em que integra sua função de julgar, que é personalíssima.
Outra vantagem é a precisão que a IA garante quando usada na seleção e categorização de um grande volume de documentos. A tecnologia TAR 2.0 – Technology Assisted Review de 2ª geração combina ciclos alternados de revisão humana com revisão por IA. Essa alternância possibilita que a IA vá “aprendendo” com a revisão humana e passe a seguir os parâmetros utilizados pela revisão humana, garantindo que, depois de alguns ciclos alternados, os documentos efetivamente importantes para aquela arbitragem tenham sido selecionados e organizados segundo categorias pré-estabelecidas. O resultado apresenta uma margem de acerto bastante significativa, não sendo difícil imaginar que paulatinamente essa margem vá crescer até atingir a perfeição, concomitantemente ao desenvolvimento da IA.
Outro aspecto em que os sistemas de IA podem trazer benefícios à fase de produção de provas na arbitragem é a utilização de ferramentas de análise relacional que são capazes de extrair de um grande volume de documentos informações sobre pessoas, datas e eventos, construindo, na sequência, linhas do tempo e organogramas que tornam a história do caso mais inteligível para árbitros e partes.
O uso de sistemas de IA na fase de produção de provas na arbitragem tem se disseminado também para fins de tradução, tanto de documentos utilizados nas provas documental e pericial, quanto de depoimentos colhidos na prova oral. Motores de tradução transformam de forma rápida e precisa documentos ou depoimentos em vários idiomas, evitando atrasos e reduzindo custos com tradução.
Questão sensível sobre o uso da IA na produção de provas na arbitragem é a confidencialidade, característica usual e muito valorizada pelas partes que escolhem a arbitragem como método de solução de conflitos.
De um lado, a IA pode ser utilizada para preservar a confidencialidade. Existem softwares que identificam cláusulas de confidencialidade, dados pessoais ou informações privilegiadas, tarjam esses trechos automaticamente antes que os documentos sejam disponibilizados na arbitragem e organizam um relatório indicando quais trechos foram tarjados e por quê.
Por outro, o uso da IA pode comprometer a confidencialidade, sendo diversos os riscos envolvidos. Em primeiro lugar, o upload de documentos que contenham dados sensíveis sem os devidos cuidados acarreta o risco de vazamento. Além disso, se o upload for feito em um sistema hospedado por terceiros, esse sistema pode usar os dados confidenciais para autotreinamento, ocasionando o risco de fragmentos do documento confidencial serem revelados em futuras respostas a serem dadas a terceiros. Portanto, documentos confidenciais jamais devem ser submetidos a sistemas de IA hospedados por terceiros, devendo se ter o cuidado de usar programas internos e ferramentas que disponham do nível de proteção compatível com o grau de confidencialidade dos documentos e da própria arbitragem.
Um problema que ainda existe no uso de ferramentas de inteligência artificial na produção e análise de provas na arbitragem decorre da alucinação. No estágio atual de desenvolvimento dos sistemas de IA, ainda são frequentes casos em que a IA “inventa” texto de lei, jurisprudência, artigo doutrinário. Os sistemas de IA querem dar uma resposta que satisfaça o interlocutor e muitas vezes eles erram para “agradar.” Outras vezes os sistemas utilizam uma base de dados muito ampla para pesquisa e o resultado são respostas pouco precisas. Por conta disso, a utilização de sistemas de IA na fase de produção de provas na arbitragem não substitui a análise humana, que é indispensável, sobretudo considerando a necessidade de se interpretar as provas produzidas.
Questão sensível que decorre do uso da IA é a perpetuação de vieses. Os sistemas de IA podem reproduzir preconceitos, o que ocorre a partir do denominado “viés de aprendizado de máquina” ou “viés de algoritmo.” Os sistemas de IA “aprendem” a partir de padrões já existentes e, numa segunda fase, quando vão tomar decisões – sobre qual documento é relevante, por exemplo – podem reproduzir uma visão distorcida a partir do parâmetro utilizado no seu treinamento. Esse exemplo evidencia que a análise da prova na arbitragem, tanto pelas partes, quanto especialmente pelos árbitros, deve ser cuidadosa e não se fiar em respostas apresentadas por sistemas de IA, que podem estar contaminadas por estereótipos.
Nesse contexto, é importante lembrar que uma das grandes vantagens da arbitragem é a análise individual do caso por profissionais que sejam especialistas na matéria, tanto por peritos e assistentes técnicos, quanto pelos próprios árbitros. Assim, a utilização de sistemas de IA para a elaboração, pelos experts, da prova a ser produzida na arbitragem e de sua correspondente análise pelos árbitros deve ser feita com cuidado redobrado a fim de garantir que o resultado não seja mera reprodução de parâmetros pré-concebidos, mas sim corresponda ao exame individual que cada caso exige.
Outro risco que não pode ser esquecido decorre da possível assimetria de recursos entre as partes de uma arbitragem. Atualmente, ainda existem sistemas de IA que são muito caros, então pode ocorrer de uma parte ter acesso a um sistema mais sofisticado e, consequentemente, mais caro, e outra não. Isso comprometeria a igualdade entre as partes e o próprio devido processo legal.
Interessante questão, que começa a ser debatida, é a necessidade de as partes divulgarem o uso da IA na arbitragem. O CIARB – Chartered Institue of Arbitrators lançou este ano um guia sobre o uso de IA em arbitragem3 com o objetivo de:
“Oferecer orientação sobre o uso da IA de modo a permitir que árbitros, partes, seus representantes e demais participantes aproveitem os benefícios da tecnologia, ao mesmo tempo em que apoia iniciativas práticas para mitigar riscos à integridade do processo, aos direitos processuais das partes e à exequibilidade de eventual sentença arbitral ou acordo de transação.”4
Em relação ao uso de IA na fase de produção de provas, uma das diretrizes do guia do CIARB prevê que a divulgação do uso de ferramentas de IA poderá ser exigida na medida em que esse uso tenha o potencial de causar impacto nas provas. Após consultar as partes, os árbitros podem estabelecer regras sobre o uso de IA pelas próprias partes, por peritos e testemunhas. Tais diretrizes devem indicar os parâmetros para o dever de divulgação, especificando o tipo de IA que está abrangida na obrigação de divulgar, as circunstâncias em que a divulgação é obrigatória e o prazo em que ela deve ser realizada.
A razão para essa divulgação é proporcionar aos demais participantes da arbitragem a oportunidade de compreender a forma e o contexto em que a IA foi ou será utilizada.
Caso uma parte deixe de cumprir a obrigação de divulgar o uso de IA, o árbitro poderá adotar medidas para investigar a omissão e deverá avaliar seus efeitos sobre a integridade do procedimento. Além disso, poderá tomar providências para sanar a falha de divulgação, estabelecer novas regras quanto ao uso da IA, extrair as conclusões pertinentes (incluindo, se for o caso, presunções desfavoráveis) ou considerar a omissão ao definir a responsabilidade pelas custas do procedimento.
O guia do CIARB contém modelo de acordo para o uso de IA na arbitragem e de ordem processual regulando o uso de IA na arbitragem.
Em 17 de julho de 2025 o CAM-CCBC editou a orientação administrativa 07/255, com diretrizes sobre a utilização de IA no âmbito dos processos administrados pelo Centro. Vale ressaltar que ao listar os riscos associados ao uso da IA, o CAM-CCBC fez referência a “possibilidade de geração de informações imprecisas ou falsas, a existência de vieses algorítmicos, a fragilidade quanto à proteção de dados confidenciais”, preocupações refletidas neste artigo.6
O CAM-CCBC estabeleceu competir a todos os participantes da arbitragem zelar para que a utilização da IA seja feita levando em consideração os deveres de confidencialidade e discrição, sendo os participantes dos procedimentos arbitrais encorajados a discutir os limites do uso da IA no seu caso concreto e incluir no termo de arbitragem regras pertinentes sobre o tema.
Considerando o ritmo em que a IA vem se desenvolvendo e seu uso se disseminando, não é necessário bola de cristal para imaginar que o seu papel na fase de produção de provas na arbitragem irá crescer cada vez mais, o que certamente trará desafios para partes, árbitros e demais envolvidos no procedimento, valendo acompanhar as regras que serão estabelecidas por entidades internacionais (como o CIARB) e pelas câmaras arbitrais.
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O presente artigo foi elaborado a partir de notas preparadas pela autora para participar do Encontro sobre Arbitragem organizado pelo Comitê Jurídico da Amcham Brasil / Rio, realizado em 3/7/2025, no Rio de Janeiro. O painel do qual participou a autora tratou de questões relevantes sobre prova na arbitragem, dentre as quais o uso da inteligência artificial na produção de provas.
1 CRISTOFARO, Flavia Savio. O uso da inteligência artificial na arbitragem doméstica. Disponível em https://www.conjur.com.br/2025-abr-03/uso-da-inteligencia-artificial-na-arbitragem-domestica/. Acesso em 23/8/2025.
2 Lei de Arbitragem, Art. 13: “Pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes.”
3 CIARB AI Guideline, março de 2025. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.ciarb.org/media/m5dl3pha/ciarb-guideline-on-the-use-of-ai-in-arbitration-2025-_final_march-2025.pdf. Acesso em 27/8/2025.
4 Tradução livre de trecho da introdução do CIAB AI Guideline.
5 Orientação Administrativa nº 07/2025 – CAM-CCBC. Disponível em: https://www.ccbc.org.br/cam-ccbc-centro-arbitragem-mediacao/orientacao-administrativa-no-07-2025/. Acesso em 26/8/2025.
6 A citada Orientação Administrativa foi editada após ter ocorrido o evento do Comitê Jurídico da Amcham Brasil / Rio, em 3/7/2025, cujas notas embasaram este artigo.