Inteligência Artificial e Direito Autoral: Como ocorre a proteção de uma obra criada por IA?
Carolina Turnes
Abril de 2025
Com o advento da inteligência artificial (IA), em especial das IAs generativas, que produzem conteúdos como músicas, imagens e vídeos, intensificou-se o debate sobre as suas possíveis implicações jurídicas, em especial no âmbito do Direito Autoral. Entre elas, destaca-se a dúvida sobre a possibilidade uma obra criada por uma IA ser protegida por direitos autorais e, em caso afirmativo, quem seria o titular dos direitos sobre elas: o criador da IA ou aquele que forneceu os inputs e orientações para a sua criação?
Para abordar essas questões, é necessário, inicialmente, analisar o conceito de “autor” e os requisitos legais que tornam uma obra passível de proteção no âmbito do Direito Autoral.
No Brasil, o artigo 11 da Lei de Direitos Autorais (Lei Federal nº 9.610/98)¹ define autor como a pessoa física que cria uma obra literária, artística ou científica. Esse conceito é alinhado ao disposto no artigo 5º, inciso XXVII, da Constituição Federal² , que garante ao autor o direito exclusivo de utilizar, reproduzir e publicar sua obra.
Com isso, observa-se a adoção pelo Direito brasileiro de um paradigma antropocêntrico, no qual a figura humana é imprescindível para o nascimento da obra tutelada pelos direitos autorais. Contudo, a própria Lei de Direitos Autorais, no parágrafo único do artigo 11, admite que o termo “autor” se aplique a pessoas jurídicas em determinadas hipóteses específicas e excepcionais, como a da obra coletiva, isto é, resultante da contribuição de diferentes autores que se fundem em uma obra autônoma, o que sinaliza uma desconstrução do protagonismo exclusivo do autor humano.³
Ademais, de acordo com o artigo 7º da referida Lei⁴, para que uma obra possa ser alvo de tutela jurídica pelo Direito Autoral é necessária a sua originalidade, em relação à qual muito se tem discutido. O dispositivo legal também exige que a obra seja “intelectual” e fruto da “criação de espírito”, atributos que, segundo entendimento majoritário, são exclusivamente humanos.
Mas é preciso levar em conta que a legislação brasileira atual, como se sabe, é muito anterior à existência da IA. Não surpreende, portanto, que tenha atribuído apenas às pessoas físicas a capacidade de criar intelectualmente.
Em resumo, a pessoa física de cujo intelecto e espírito tenha resultado a criação de uma obra original – o autor – goza da proteção não apenas de seus direitos patrimoniais, relativos à reprodução da sua obra (estes passíveis de cessão total ou parcial a terceiros, inclusive pessoas jurídicas), como também dos seus direitos morais, isto é, a tutela da “paternidade intelectual” da obra, um direito da personalidade que reflete o vínculo permanente e indissolúvel entre o autor e sua criação⁵ (que são inalienáveis e irrenunciáveis).
Nessa esteira, é relevante mencionar o Projeto de Lei nº 2.338/2023, que tramita no Congresso Nacional e busca regulamentar o uso e o desenvolvimento de inteligência artificial no Brasil. Em dezembro de 2024, após a apresentação de quase 200 emendas⁶, o projeto foi aprovado no Senado Federal e seguiu para avaliação na Câmara dos Deputados. Embora o projeto aborde vários aspectos relacionados à IA, ele ainda não esclarece as questões levantadas sobre a proteção das obras criadas por ela.
Evidente, portanto, a existência de uma lacuna legislativa referente a esta temática. Pela leitura dos dispositivos legais até agora mencionados, seria possível concluir que a inteligência artificial não poderia gerar obras protegida pelos direitos autorais, exatamente por sua incapacidade de exercer atributos considerados unicamente humanos.
Mas isso significa que uma obra criada por IA ficaria, então, fora da proteção jurídica autoral no ordenamento jurídico brasileiro? A resposta não é simples. Existem diferentes posicionamentos a esse respeito, assim como sobre várias outras questões relacionadas ao uso da inteligência artificial no Brasil.
Uma corrente defende que, dado que a legislação atual exige a existência de uma pessoa física na criação da obra para que haja proteção autoral, qualquer obra gerada por IA seria considerada de domínio público. Nesse caso, a obra passaria a ser apropriada pela coletividade ao nascer, podendo ser explorada comercialmente sem a necessidade de autorização prévia do operador da inteligência artificial.
Por outro lado, essa interpretação gera controvérsias, especialmente no que diz respeito à perda da exclusividade de exploração comercial das obras por parte dos indivíduos e empresas criadoras. Sem qualquer proteção jurídica, os desenvolvedores não teriam segurança sobre aquilo em cujo processo de criação tiveram alguma participação, mesmo que indiretamente.
Por esta razão, outra corrente aponta para uma maior flexibilidade: existindo, necessariamente, um nexo de causalidade entre a pessoa física, a inteligência artificial e a obra gerada, isso bastaria para que houvesse aplicação do Direito Autoral.
Uma terceira corrente propõe uma abordagem intermediária, sugerindo que a proteção autoral dependeria da magnitude da contribuição humana no processo criativo. Se a pessoa física tiver dado uma contribuição significativa para o desenvolvimento da obra por meio de prompts criativos, seria possível reconhecer a aplicação do Direito Autoral.
Contudo, é evidente a dificuldade em se definir com precisão o quantum criativo oferecido pela pessoa humana e o que de fato foi desenvolvido pela inteligência artificial.
Como aponta Miguel da Silva Domingos, a evolução da complexidade da inteligência artificial permite, hoje, que ela seja considerada um agente dotado de autonomia, podendo gerar ideias em sua totalidade ou não, independentemente do programador envolvido. Assim, o autor afirma que essa nova capacidade da inteligência artificial poderia estar abarcada pelo conceito de “processo criativo”, essencial para tutela autoral.
Esta é uma discussão longe de estar resolvida no âmbito nacional.
Resta, então, analisar a possibilidade de criação de uma nova proteção sui generis. Esta seria uma solução que evitaria discussões dogmáticas e desencaixes legais.
Em âmbito internacional, já se observa um movimento por parte da doutrina europeia que defende esta proposta, como permite o Acordo TRIPS (Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights) em casos especiais.
Como afirma Eduardo Miceli Fanti Fajardo, no caso das IAs, é possível que uma nova forma de proteção seja estabelecida, com base na função social da obra, em vez de se fundamentar na propriedade em si, como ocorre tipicamente no modelo dos direitos autorais. Nesse sentido, haveria uma espécie de privilégio na exploração econômica da obra criada pela IA, mais restrita do que a proteção conferida aos direitos autorais.
Portanto, é possível concluir que, atualmente, a legislação brasileira não dispõe de dispositivos que permitam uma interpretação precisa de que as obras criadas por inteligência artificial possam ser protegidas pelo Direito Autoral. Todavia, sabendo que a tutela dos bens intelectuais possui foco no resultado alcançado, e não no processo em si, é pertinente refletir sobre a possibilidade de criação de uma nova forma sui generis de tutela para as obras geradas por IA.
¹ Art. 11. Autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica. Parágrafo único. A proteção concedida ao autor poderá aplicar-se às pessoas jurídicas nos casos previstos nesta Lei.
² Art. 5º. (…) XXVII – aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar;
³ SOUZA, Allan Rocha de. SCHIRRU, Luca. A Nova Fronteira Tecnológica do Direito Autoral. In: SANTOS, Manoel J. Pereira dos; SCHAAL, Flavia Mansur M.; GOULART, Rubeny. Propriedade Intelectual e Inteligência Artificial. São Paulo: Almedina, 2024. E-book. ISBN 9786556279534. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9786556279534/. Acesso em: 06 fev. 2025. P. 254.
⁴ Art. 7º. São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como: (…)
₅ CUPIS, Adriano de. Os direitos da personalidade. 2ª ed. São Paulo: Romana jurídica, 2004. P. 336-337.
₆ Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2024/12/10/senado-aprova-pl-da-inteligencia-artificial
₇ Nesse sentido: Miguel da Silva Domingos. A Problemática da Autoria nas Obras Criadas por Inteligência Artificial. In: PINTO, Rodrigo Alexandre L.; NOGUEIRA, Jozelia. Inteligência Artificial e Desafios Jurídicos: Limites Éticos e Legais. São Paulo: Almedina, 2023. E-book. ISBN 9786556279268. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9786556279268/. Acesso em: 05 fev. 2025. P. 361; RAMALHO, Ana. Will robots rule the (artistic) world? A proposed model for the legal status of creations by artificial intelligence systems. Forthcoming in the Journal of Internet Law, July. 2017. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=2987757 ou http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2987757; SCHÖNBERGER, Daniel. Deep Copyright: Up – and Downstream – Questions Related to Artificial Intelligence (AI) and Machine Learning (ML). In: Droit d’auteur 4.0 / Copyright 4.0, DE WERRA Jacques (ed.), Geneva / Zurich (Schulthess Editions Romandes) 2018, pp. 145-173. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=3098315.
₉ DOMINGOS, Miguel da Silva Domingos. A Problemática da Autoria nas Obras Criadas por Inteligência Artificial. In: PINTO, Rodrigo Alexandre L.; NOGUEIRA, Jozelia. Inteligência Artificial e Desafios Jurídicos: Limites Éticos e Legais. São Paulo: Almedina, 2023. E-book. ISBN 9786556279268. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9786556279268/. Acesso em: 05 fev. 2025. P. 358
₁₀ VIEIRA, José Alberto. Obras geradas por computador e direito de autor. In: Direito da Sociedade da Informação. Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coimbra Editora. 2001. P. 142-143.
₁₁ SCHAAAL, Flavia Mansur Murad. Um Novo Sistema de Propriedade Intelectual? In: SANTOS, Manoel J. Pereira dos; SCHAAL, Flavia Mansur M.; GOULART, Rubeny. Propriedade Intelectual e Inteligência Artificial. São Paulo: Almedina, 2024. E-book. ISBN 9786556279534. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9786556279534/. Acesso em: 05 fev. 2025. P. 301.
₁₂ FAJARDO, Eduardo Miceli Fanti. Da Incompatibilidade da Autoria com as Criações de Inteligência Artificial. Revista da Associação Brasileira da Propriedade Intelectual (ABPI), Rio de Janeiro, nº 184, p. 18, mai./jun., 2023.