STJ CONFIRMA VALIDADE DE CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA ESTIPULADA POR SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA PRESTADORA DE SERVIÇO PÚBLICO
Resumo: Pela primeira vez o STJ se pronuncia sobre questão que vem sendo intensamente debatida na doutrina jurídica a respeito da possibilidade de sociedades de economia mista, especialmente quando prestadoras de serviços públicos, validamente estipularem a submissão obrigatória à arbitragem das disputas relativas a determinado contrato. Entre outros importantes pronunciamentos, o STJ confirmou a validade da estipulação, firmando o entendimento de que o art. 1º da Lei 9.307/96 é suficiente para atender ao princípio da legalidade, não sendo necessário que a arbitragem esteja autorizada por lei especificamente dirigida às entidades da Administração Pública indireta.
Abstract: For the first time the Superior Court of Justice – STJ renders na opinion on the intensely debated issue regardind the possibility of a mixed-economy Corporation, specially one that renders public services, validly agreeing on the mandatory submission to arbitration of disputes related to a determined contract. Among other importante rulings, the STJ confirmed the validity of the arbitration provision, understanding that the so-called “legal reserve principle” is satisfactorily complied with by art. 1 of Law 9.307/96, a special statute specifically adressed to the state owned entities not being required.
Palavras-chave: Arbitragem – Contratos – Administração pública indireta – Sociedades de economia mista prestadoras de serviço público – Princípio da legalidade.
Keywords: Arbitration – Contracts – Indirect public administration entities – Mixed-economy companies suppliers of public servisse – Principle of legality.
Foi publicado no DOU de 14.09.2006 acórdão da 2º T. do STJ (REsp 612.439-RS, rel. Min. João Otávio de Noronha) que assegura a execução específica de cláusula compromissória constante de contrato de compra e venda de energia elétrica celebrado por sociedade de economia mista prestadora de serviço público.
Trata-se de leading case que pode vir a ter grande importância para a consolidação da arbitragem no Brasil, pois confirma ser possível e lícita a eleição dessa via alternativa de solução de conflitos em contratos firmados por entidades da Administração Pública, algo que vinha sendo colocado em questão por decisões judiciais de tribunais inferiores e por parte minoritária, mas expressiva, da doutrina.
Antes de entrar no exame da decisão propriamente dita, convém recapitular a discussão que vinha sendo travada no meio jurídico nacional a respeito do tema. Dessa forma, será possível colocar a decisão do STJ no devido contexto, dela retirando conclusões de maior alcance.
Um bom roteiro para se percorrer os vários argumentos levantados contra a validade da estipulação nos contratos da Administração é o parecer de Luis Roberto Barroso publicado na Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, 19, jan.-mar. 2003, p. 415 a 439, sob o título “Sociedade de economia mista prestadora de serviço público. Cláusula arbitral inserida em contrato administrativo sem prévia autorização legal — Invalidade”. Concedido em resposta à consulta formulada por uma empresa estatal que se encontrava em situação idêntica àquela discutida na decisão do STJ, o referido parecer fornece um retrato bastante completo e acurado do ponto de vista contrário à admissão da arbitragem nesses casos.
Como adverte o parecerista logo de início, a questão central e polêmica nessa matéria sempre foi a da “existência de lei autorizando a Administração a submeter-se à arbitragem”, não se tendo chegado a sustentar que “a solução arbitral é constitucionalmente incompatível com as disputas que envolvam a Administração Pública” (p. 427). Em outras palavras, essa corrente defende que, para que à arbitragem possa ser validamente contratada pela Administração Pública, isso precisa estar expressamente autorizado em lei específica, como hoje já ocorre em relação a alguns poucos casos[1].
Esse requisito (exigência de autorização legislativa específica) seria, em primeiro lugar, uma decorrência do princípio da legalidade, aplicável, como se sabe, à atuação da Administração Pública, princípio esse que poderia ser assim formulado: enquanto os indivíduos e pessoas privadas podem fazer tudo o que a lei não veda, os Poderes Públicos somente podem praticar os atos determinados pela lei. “Como decorrência, tudo aquilo que não resulta de prescrição legal é vedado ao administrador”. (ob. cit., p. 428).
Outros comentaristas lembram que o art. 1.º da Lei 9.307/96 autoriza expressamente a utilização da arbitragem por todas as “pessoas capazes de contratar”, o que, para eles, seria suficiente para o preenchimento do requisito imposto pelo princípio da legalidade, visto que os entes da administração pública em questão são, indubitavelmente, “pessoas capazes de contratar”, estando, assim, ao menos em princípio, entre os destinatários da autorização legal[2]. Esse ponto, infelizmente, não chegou a ser abordado no parecer de Luís Roberto Barroso. Aparentemente, os defensores da posição mais restritiva à arbitragem exigiriam uma lei que se dirigisse expressa é especificamente ao Poder Público, o que não “ocorre como citado dispositivo da lei de arbitragem.
Além disso, o parecer de Luís Roberto Barroso ressalta que não se trataria, no caso, apenas de ausência de uma lei autorizativa, pois existe dispositivo legal que, ao contrário, veda expressamente a possibilidade de estipulação da arbitragem nos contratos com entidades do Poder Público o art.55,§2º, da Lei 8.666/93, a chamada Lei de Licitações e Contratos da Administração Pública. Esse dispositivo que também seria aplicável às sociedades de economia mista, determina ser de inclusão obrigatória em todos os contratos celebrados pelo Poder Público cláusula declarando competente o foro da sede da Administração para dirimir qualquer questão contratual. Essa cláusula de eleição de foro seria incompatível com a cláusula compromissória.
Uma corrente doutrinária, liderada por Carlos Alberto Carmona[3], tenta afastar essa alegada incompatibilidade, sustentando que o citado dispositivo legal exigiria apenas que “o eventual concurso do juiz togado para realização de atos para os quais o árbitro não tenha competência (atos que impliquem a utilização de coerção, execução da sentença arbitral, execução de medidas cautelares) seja realizado na comarca escolhida”.[4]
Outra corrente doutrinária sustenta que, desde a EC 19/98, não é mais possível aplicar às sociedades de economia mista as regras da Lei 8.666/93, o que afastaria, no caso dessas sociedades, a obrigatoriedade de eleição de foro prevista no art. 55, §2.º.
Antes da promulgação da referida Emenda Constitucional, a Constituição Federal, ao mesmo tempo em que expressamente submetia a sociedade de economia mista “ao regime jurídico próprio da empresa privada” (art. 173, §1.º), mandava aplicar as mesmas “normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades” (art. 22, XXVII), indistintamente, à administração pública direta e indireta, aí também incluídas, portanto, as sociedades de economia mista.
Isso retirava muito da significação prática do art. 173,§1.º, pois o regime jurídico próprio da empresa privada não era aplicável as sociedades de economia mista em um dos aspectos mais importantes da sua existência nada menos do que todas as modalidades de contratos por elas celebrados ficavam excluídos desse regime e submetidos às mesmas normas rígidas e extravagantes criadas para a administração pública direta.
A EC 19/98 alterou a redação de ambos os dispositivos acima referidos; com o claro objetivo de mudar essa situação.
Na nova redação do §1.º do art. 173 determinou ao legislador ordinário a edição do chamado “estatuto jurídico da: empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica”, deixando desde logo estabelecido que esse diploma deveria, por um lado, submeter as referidas entidades “ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários” e, por outro lado, conter regras especiais sobre “licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações observados os princípios da administração pública”.
A nova redação do inciso XXVII do art. 22 introduzida pela EC 19/98 deixa claro que o diploma legal contendo as normas gerais de licitação e contratação aplicáveis à administração pública direta não mais deve se aplicar às empresas públicas e sociedades de economia mista, as quais deverão passar a ser regidas, nesse particular, pelo diploma previsto no §1.º do art. 173.
As normas gerais de licitação e contratação da administração pública previstas no inciso XXVII do art. 22 da CF/88 foram instituídas pela Lei 8.666/93. Esse diploma foi editado antes da promulgação da EC 19/98 e seu art. 1.º, parágrafo único subordina ao regime por ele instituído também as empresas públicas é sociedades de economia mista. Mas, agora, como esclarece Diogo de Figueiredo Moreira Neto:
“As sociedades de economia mista foram nominadamente excluídas do alcance das normas gerais, de competência da União, previstas no art. 22, XXVII, da Constituição e, em consequência, do regime geral instituído pela Lei 8.666/93, mas o mesmo dispositivo constitucional, in fine, a sujeita a um específico regime para as suas licitações e contratações, disposto no já referido estatuto jurídico (art. 173,§1.º, III).
Por estarem submetidas a esse regime legal especial, excepcionalmente limitador da livre contratação, fica afastado não só o regime legal geral de licitações e contratações administrativas, fundado no art. 22, XVII, CF/88, como também a sua aplicação subsidiária, pois nenhum regime público, pouco importa se geral ou especial, poderá ser aplicado para ampliar ou agravar uma estrita derrogação do regime próprio estabelecida no art. 173, §1.º, III da Constituição.”[5] (grifos no original)
Luis Roberto Barroso combate essa linha de. raciocínio com dois argumentos, aqui reproduzidos nas próprias palavras daquele jurista: (i) “enquanto não editado o estatuto jurídico a que se refere o § 1.º do art. 173, continua a aplicar-se a Lei 8.666/93, diploma pré-existente e único para todos os. entes da Administração”, e (ii) “o novo regime de licitações e contratações somente se aplica às empresas públicas e sociedades de economia mista exploradoras de atividade econômica (tema de que cuida o art. 173), e não àquelas que prestam serviços públicos”.[6]
De fato, existe controvérsia entre os doutrinadores sobre se, enquanto não for editada a nova lei prevista pela Constituição (o tal estatuto jurídico), continua a Lei 8.666/93. inteiramente aplicável as empresas públicas e sociedades de economia mista.
Como se viu do trecho acima citado, Diogo de Figueiredo Moreira: Neto entende que continuar a aplicar às sociedades de economia mista regras especiais e extravagantes que a Emenda Constitucional expressamente afastou é desrespeitar a vontade do legislador constitucional, acrescentando que se deve aplicar a essas sociedades e empresas regras de contratação que não observem “senão os princípios constitucionais gerais da administração pública, estabelecidos no art. 37, caput, CF”,[7] ou seja, os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Jessé Torres Pereira Junior também defende posição semelhante, recomendando apenas que as empresas estatais editem “regulamentos próprios, que, não reproduzindo as disposições da lei geral de licitações, já darão cumprimento ao regime delineado pela Emenda 19, estabelecendo regras procedimentais harmonizadas com os princípios licitatórios, com as particularidades da estrutura organizacional da empresa e com as características dos serviços que presta ou do mercado em que atua”.[8]
Outros doutrinadores de peso, porém, como Maria Sylvia Di Pietro e Celso Antônio Bandeira de Mello, além do Tribunal de Contas da União, em decisão do seu plenário, adotaram o entendimento oposto, sustentando que a Lei 8.666/03 só deixará de ser aplicável após a edição da nova lei.[9]
O segundo argumento utilizado por Luís Roberto Barroso, acima mencionado, refere-se a uma outra questão que também é bastante polêmica entre os administrativistas: a pertinência e significado da distinção que muitos fazem entre sociedades de economia mista que prestam serviços públicos daquelas que “exploram atividade econômica”. [10]
A origem da polêmica está no fato de que a Constituição manda aplicar o “Regime jurídico próprio das empresas privadas” às empresas públicas, sociedades de economia mista “e outras entidades que explorem atividade econômica”. Os doutrinadores antes referidos entendem que esse dispositivo só permite a aplicação do regime privado às sociedades de economia mista “que explorem atividade econômica” categoria que se distinguiria das sociedades prestadoras de serviço público.
José Edwaldo Tavares Borba e Diogo de Figueiredo”[11] fazem uma vigorosa crítica a essa posição, sustentando que toda sociedade de economia mista inclusive a prestadora de serviço público, explora atividade econômica. Para eles a expressão teria sido utilizada pela Constituição para qualificar apenas o termo “outras entidades”, o que seria demonstrável até mesmo pela análise gramatical do texto normativo.
Em reforço a esse entendimento, José Edwaldo Tavares Borba lembra que o próprio conceito legal de sociedade de economia mista é empresa pública dado pelo art. 5.º do Dec. Lei 200/67, com a redação do Dec. Lei 900/69 — é ode entidades criadas “por lei para a exploração de atividade econômica”. Entende esse autor que, quando o art. 173, §1.º, da CF/88 fez alusão a esses entes públicos,
“estava contemplando entidades cuja natureza já lhes determinava a sua condição de entes voltados para a atividade econômica. O art. 173, §1.º, em um esforço de generalização, faz referência ainda a “outras entidades, estas sim dependentes de qualificação pela característica da exploração de atividade econômica. E nesse âmbito das “outras entidades”, poderíamos situar toda e qualquer sociedade, comercial ou civil, sob o controle do poder público.
As sociedades de economia mista e empresas públicas destinam-se, pois, necessariamente, ao exercício da atividade econômica. E não poderia ser diferente, pois, revestindo a forma de sociedade comercial, daí decorre, como um corolário, o caráter mercantil das atividades desenvolvidas, e bem assim a finalidade lucrativa, que é inerente à mercancia.
As atividades típicas de administração pública deverão ser exercidas pela administração centralizada ou por autarquias, e, em certas circunstâncias, por fundações públicas, jamais por sociedades comerciais.
Isto não significa que os serviços públicos não possam ser concedidos a sociedades de economia mista ou a empresas públicas, como de resto podem ser concedidos a qualquer empresa privada.
As concessionárias privadas de serviços públicos não deixam, por força da concessão, de exercer uma atividade econômica. O serviço público, quando concedido, não deixa, igualmente, de ser um serviço público, mas a concessionária, ao explorá-lo, explora-o com finalidade de lucro, exercendo, portanto, uma atividade econômica.
O governo ao constituir uma sociedade de economia mista ou uma empresa pública para explorar um serviço público, escolhe uma forma privada de atuação, que tem na exploração da atividade econômica a condição de sua realização. Cabe, pois, afirmar que todas as sociedades de economia mista se destinam ao exercício de atividade econômica”.
As considerações acima são, aliás, muito bem ilustradas pela situação da sociedade de economia mista autora da ação que resultou na recente decisão do STJ que este artigo se propõe a comentar. Trata-se, aí, de uma sociedade de economia mista pertencente ao Estado do Rio Grande do Sul que é concessionária de um serviço público federal, distribuição de energia elétrica.
Nessas condições, não há como, no caso falar-se em descentralização de função estatal, pois o ente público que criou a sociedade, um estado da Federação, não é o Poder Concedente do serviço público que ela exerce. Nesse caso, mais do que em qualquer outro fica claro que a mera circunstância de estar prestando um serviço público não descaracteriza o exercício de uma atividade econômica. O serviço público foi concedido pela União à sociedade de economia mista do Estado do Rio Grande do Sul da mesma forma como o foi, em outros estados, a diversas empresas privadas. Não parece haver entre as situações dessas concessionárias estatais e privadas, qualquer diferença conceitual, em termos de exercício de uma atividade econômica.
Essa é, em grandes linhas, a situação da discussão jurídica sobre o tema, que certamente foi contemplada pelo STJ ao proferir a aludida decisão, e que poderia ser resumida nas quatro seguintes questões:
- Para que o princípio da legalidade seja atendido é necessário que a arbitragem esteja autorizada por uma lei especificamente dirigida às entidades do Poder Público ou a autorização do art. 1.º da Lei 9.307/96, dirigida genericamente a todas as “pessoas capazes de contratar”, seria suficiente?
- Ao determinar que a eleição do foro da sede da Administração para dirimir qualquer questão contratual é obrigatória, o art. 55, 82.º, da Lei 8.666/93 tornou inviável a estipulação da cláusula compromissória, onde as partes se comprometem a submeter à arbitragem os litígios que possam surgir relativamente ao contrato?
- O art. 55,§2.º, da Lei 8.666/93 continua aplicável às sociedades de economia mista e empresas públicas mesmo após a EC 19/98 tê-las submetido ao regime jurídico próprio da empresa privada, afastando expressamente as normas gerais de licitação e contratação aplicáveis à Administração Pública direta, eu isso somente ocorrerá após a edição do estatuto jurídico a que se refere o §1. do art. 173 da CF/88?
- A submissão pela Constituição Federal ao regime jurídico da empresa privada e o afastamento das normas gerais de contratação previstas na Lei 8.666/93 se aplicam a toda e qualquer sociedade de economia mista e empresa pública ou isso não se aplica às entidades cujas atividades sejam a prestação de serviços públicos?
Cabe agora analisar de que forma o STJ enfrentou tais questões. O trecho do voto do Ministro João Otávio de Noronha que aborda o tema é o seguinte:
“Outra questão que merece pormenorizada análise é a relativa à possibilidade de uma sociedade de economia mista celebrar contrato de compra e venda no qual conste o instituto da cláusula compromissória.
A sociedade de economia mista é uma pessoa jurídica de direito privado, com participação do Poder Público e de particulares em seu capital e em sua administração, para a realização de atividade econômica ou serviço público outorgado pelo Estado. De fato, possuem a forma de empresas particulares, admitem lucro e regem-se pelas normas das sociedades mercantis, especifica- mente a Lei das Sociedades Anônimas — Lei 6.404/76.
É certo que a Emenda Constitucional n. 19/98 previu a edição de estatuto jurídico para as sociedades de economia mista que explore atividades econômicas (CF/88, art. 173,§1.º), mas, nem por isso, fica essa entidade estatal, componente da administração indireta — Dec.-lei 200/67 —, impedida de estabelecer normas, sobretudo administrativas, para a consecução dos objetivos estatutários e para o controle finalístico da sociedade, mormente diante do teor do art. 173,§1.º, I, da CE que reconhecesse a sujeição da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias ao regime jurídico das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributárias”, o que, por conseguinte, atrai a incidência, quando da celebração de contratos de direito privado, do disposto nos arts. 5.º, III, do Dec. 200/67 e 235 da Lei 6.404/76.
Nessa perspectiva, não me parece haver dúvida quanto à validade de cláusula compromissória convencionada por sociedade de economia mista, sendo despicienda a necessidade de autorização do Poder Legislativo estadual para que se possa efetivar tal procedimento. Efetivamente, a referida empresa estatal — que submetida ao regime jurídico de direito privado e celebrando contratos situados nesta seara jurídica — pode firmar, validamente, compromisso arbitral.
É inequívoco, ainda que não haja impedimento ao uso da arbitragem pela administração indireta, que nem toda matéria possa ser dirimida no juízo arbitral. Por essa razão, faz-se necessário também que haja ponderação quanto à definição do que pode ou não ser objeto de arbitragem.
Nesse tocante, entendo que, quando os contratos celebrados pela empresa estatal versem sobre atividade econômica em sentido estrito — isto é, serviços públicos de natureza industrial ou atividade econômica de produção ou comercialização de bens, suscetíveis de produzir renda e lucro —, os direitos e as obrigações deles decorrentes serão transacionáveis, disponíveis e, portanto, sujeitos à arbitragem.
Friso ainda que a própria lei que dispõe acerca da arbitragem — art. 1.º da Lei 9.307/96 — estatui que “as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”.
Por outro lado, quando as atividades desenvolvidas: pela empresa estatal decorram do poder de império e, consequentemente, sua consecução esteja diretamente relacionada ao interesse público primário, estarão envolvidos direitos indisponíveis e, portanto, não sujeitos à arbitragem. Reporto-me, a propósito, à lição de Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de direito administrativo, 4. ed., São Paulo, Malheiros, 1993, p. 22), que define interesse público primário como aquele que a lei aponta como sendo o interesse da coletividade: da observância da ordem jurídica estabelecida a título de bem curar o interesse de todos.
Na espécie, destaco o caráter patrimonial do objeto do litígio submetido à arbitragem. Com efeito, discute-se na petição inicial (fls. 50/115) — ação condenatória com pedido de antecipação de tutela proposta pela ora recorrida — acerca do cumprimento de contrato de compra e venda de energia elétrica. Desse modo, sendo o objeto do contrato de serviço público prestado pela entidade estatal destinado à atividade econômica de produção e comercialização de bens — no caso, energia elétrica —, pode ser pactuada, mormente diante da disponibilidade do bem, a respectiva cláusula compromissória em caso de descumprimento da avença”.
Além da objetiva e inequívoca confirmação da “validade de cláusula compromissória convencionada por sociedade de economia mista” e da ausência de “impedimento ao uso da arbitragem pela administração indireta”, a decisão também permite extrair algumas outras importantes conclusões.
A ênfase colocada no fato de o art. 1.º da Lei 9.307/96 autorizar a estipulação da arbitragem por todas as pessoas capazes de contratar, claramente indica, ainda mais no contexto em que isso foi feito, que o tribunal se posicionou no sentido de entender que esse dispositivo legal é suficiente para que se tenha como atendido o princípio da legalidade, não sendo necessário, para tanto, que a arbitragem esteja autorizada por lei especificamente dirigida as entidades do Poder Público.
A decisão, por outro lado, não entrou na polêmica da discussão sobre a correta interpretação do art. 55, §2.º, da Lei 8.666/93, o que se tornou desnecessário, no caso concreto, na medida em que o tribunal, de forma muito nítida, adotou o entendimento de que esse dispositivo não é aplicável às sociedades de economia mista.
O voto do Ministro João Otávio de Noronha reconhece que a “Emenda Constitucional n. 19/98 previu a edição de estatuto jurídico para as sociedades de economia mista”, mas não considera isso motivo para alterar seu entendi- mento, que parece em linha com a posição defendida por Jessé Torres Pereira Junior, conforme citação transcrita neste trabalho, tendo em vista as referências feitas à possibilidade de adoção pelas próprias sociedades de economia mista de regulamentos internos com as normas administrativas necessárias “para a consecução dos objetivos estatutários e para o controle finalístico da sociedade, mormente diante do teor do art. 173, §1.º, I, da CF/88, que reconhecesse a sujeição da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias ao regime jurídico das empresas privadas”.
O acórdão, aliás, faz questão de destacar e enfatizar que as sociedades de economia mista adotam “a forma de empresas particulares, admitem lucro e regem-se pelas normas das sociedades mercantis”.
Por outro lado, ao abordar a questão da arbitrabilidade objetiva, ressalvando que não podem se sujeitar à arbitragem litígios relativos a direitos indisponíveis – o que ocorre com os atos que decorram do poder de império do Estado relacionados, de forma direta, ao interesse público primário -, o acórdão esclarece que entende estarem incluídos no conceito de “atividade econômica” a “serviços públicos de natureza industrial ou atividade econômica de produção ou comercialização de bens, suscetíveis de produzir renda e lucro” e ainda que “os direitos e as obrigações deles decorrentes serão transacionáveis disponíveis e, portanto, sujeitos à arbitragem”. Em outra passagem, é feita também referência ao “objeto do contrato de serviço público prestado pela entidade estatal destinado à atividade econômica de produção e comercialização de bens — no caso, energia elétrica”.
Observa-se, assim, que o STJ acabou por resolver as principais questões que eram relevantes para o equacionamento do tema, contribuindo para pacificar a matéria e acabar com a insegurança jurídica que prevalecia nessa área, que é de grande importância para o instituto da arbitragem e a economia do país.
[1]Esse é o caso, por exemplo, dos contratos internacionais regidos pelo art. 32, 8 6.º, da Lei 8.666/93, dos contratos de concessão para exploração, desenvolvi- mento e produção de petróleo, nos termos do art. 43, X, da Lei 9:478/97, dos contratos de concessão de serviço público, celebrados ao amparo do art. 23-A da Lei 8.987/95, com a redação dada pela Lei 11.196/2005, e do contrato de parceria público-privada de que trata a Lei 11.079/2004, conforme seu art. 11, III.
[2] Vide a esse respeito CRISTOFARO, Pedro Paulo. Arbitrabilidade de questões envolvendo as pessoas de direito público, as sociedades de economia mista e as empresas públicas. Anais das Palestras Proferidas em 2004 da Secretaria Pro Tempore do Conselho de Câmaras de Comércio do Mercosul. Rio de Janeiro: Confederação Nacional do Comércio, 2005, p. 114. Ver também NUNES PINTO, José Emílio. A arbitragem na comercialização de energia elétrica. Revista de Arbitragem e Mediação, n.9, abr.-jun. 2006, p. 175 (e, trecho que refere apenas notícia, já que o correspondente acordão ainda não havia sido publicado).
[3] CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo — Um comentário à Lei 9.307/96. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 54-55. Sobre o assunto. ver também CRISTOFARO, Pedro Paulo. Ob. cit., p. 116. Ver ainda FIGUEIREDO MOREIRA NETO, Diogo de, e JURUENA VELLELA SOUTO, Marcos. Arbitragem em contratos firmados por empresas estatais. RDA 236/216.
[4] No artigo intitulado Arbitragem nos contratos administrativos: panorama de uma discussão a ser resolvida (RAMALHO ALMEIDA, Ricardo. Arbitragem interna e internacional — questões de doutrina e da prática. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 273), em coautoria com Carlos Affonso Pereira de Souza, sustentamos ser difícil conciliar essa interpretação “com a utilização pelo dispositivo legal das expressões “para dirimir qualquer questão contratual, já que, ao desempenhar o papel restrito que a arbitragem lhe reserva, limitado à “realização de atos para os quais o árbitro não tenha’ competência”, o juiz togado não estará, de forma alguma, dirimindo qualquer questão contratual, competência que fica atribuída com exclusividade ao árbitro”.
[5] Sociedades de economia mista e reforma administrativa. RDA 217/94.
[6] Ob. Cit., p. 421.
[7] Ob. Cit., ibidem.
[8] TORRES PEREIRA JÚNIOR, Jessé. Da reforma administrativa constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 375.
[9] A propósito, vide artigo de co-autoria do autor deste trabalho, antes citado, p. 280-283.
[10] Afirmando a distinção entre sociedades de economia mista que prestam serviços públicos daquelas que desempenham atividades econômicas, vide: MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 27. Ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 358; BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo 14. Ed. São Paulo: Malheiros, 2002, pp. 177 e ss.; MEDAUAR, Odete. Direito administrativo sistematizado. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 36; e CRETELLA JÚNIOR, José. Direito Administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p.166.
[11] TAVARES BORBA, José Edwaldo. Sociedade de economia mista e privatização. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997, p: 95-97 e FIGUEIREDO, Diogo, p. 96-100. Na mesma direção, José dos Santos Carvalho Filho entende que “atividade econômica” é expressão genérica, que abrange também a prestação de serviços públicos (Manual de direito administrativo. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p: 328).