Controle da narrativa do direito concorrencial e perigo da história única
Ythallo Costa
Julho de 2025
Disponível em: Direito concorrencial: controle da narrativa e risco de história única
Em sua obra “O perigo de uma história única”, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie nos alerta sobre os riscos de aceitar uma única versão da realidade como verdade absoluta. Para ela, quando ouvimos apenas uma narrativa sobre um povo, uma cultura ou um evento, acabamos por reduzir sua complexidade, desumanizando-o e tirando-lhe sua pluralidade.
O que essa reflexão literária tem a ver com o direito concorrencial? Muito.
O direito concorrencial é profundamente dependente da forma como os fatos são narrados. Empresas, órgãos reguladores, advogados e economistas constroem narrativas sobre mercados, comportamentos e estratégias comerciais, que influenciam diretamente a forma como condutas são enquadradas: como legítimas ou abusivas, inovadoras ou excludentes, eficientes ou predatórias. E tudo isso influencia diretamente os consumidores.
E é justamente aqui que mora o perigo. Quando se aceita, sem crítica, uma única versão sobre a conduta de um agente econômico — por mais bem construída que seja — corre-se o risco de reproduzir, no plano jurídico, aquilo que Chimamanda denuncia no plano cultural: a violência da simplificação.
Para trazer à realidade, tomemos como exemplo a plataforma de streaming de música Spotify. Há uma narrativa predominante que descreve plataformas como essa (de streaming musical) como agentes monopolistas disfarçados de inovação, que concentram audiências, exploram dados e impõem condições desfavoráveis a artistas e concorrentes. O uso de algoritmos para recomendar músicas, a gestão não clara das remunerações e a centralização de poder nas mãos de poucos players sustentam a tese de que essas plataformas, na prática, sufocam alternativas e reduzem a diversidade.
Mas essa não é a única narrativa possível.
Há também uma visão — igualmente fundamentada — que apresenta o Spotify como um agente inovador, que revolucionou o acesso à música, quebrou barreiras geográficas, reduziu drasticamente os custos para o ouvinte e ampliou exponencialmente o repertório disponível a qualquer usuário. Para muitos consumidores, a plataforma democratizou o consumo de música, colocando em um mesmo ambiente o que antes estava restrito a quem podia pagar por álbuns físicos ou downloads individuais.
Ambas as narrativas contêm verdades. O problema surge quando uma delas é assumida como a única lente possível de análise e impacta o consumo de milhares de consumidores.
Quando um consumidor passa a enxergar apenas o discurso da eficiência, por exemplo, corre-se o risco de ignorar os impactos concorrenciais e culturais dessa concentração de mercado. Por outro lado, demonizar o Spotify como vilão monopolista sem considerar seus ganhos de acessibilidade e escala também é uma forma de apagar complexidades.
A lógica de “história única”, denunciada por Chimamanda, se aplica aqui com precisão. Quando apenas uma história sobre uma plataforma digital domina o público — leia-se consumidores —, perdemos a capacidade de escolher conscientemente. E quando o consumo é guiado apenas por uma versão da realidade, construída por discursos de marketing ou o que seja, o consumidor deixa de ser livre para se posicionar com autonomia.
Assim como no alerta de Chimamanda, aceitar uma história única nos leva a enxergar apenas o que essa história nos permite ver. No direito concorrencial, isso pode significar punir práticas legítimas por força de uma narrativa enviesada — ou, no extremo oposto, deixar de punir condutas lesivas por confiar em um discurso de eficiência. Ambas as hipóteses mitigam a livre concorrência.
Segundo Foucault, no livro “Microfísica do poder”, controlar a narrativa é disputar poder. No ambiente concorrencial não é diferente. O modo como um produto é anunciado, como uma empresa se apresenta, os dados que seleciona para destacar (ou ocultar), tudo isso constrói uma versão estratégica da realidade de mercado. E quanto mais persuasiva essa versão, mais ela molda o desejo e a decisão do consumidor.
A lição de Chimamanda, portanto, é especialmente valiosa para o direito concorrencial, sobretudo o brasileiro, que vive uma fase de amadurecimento institucional. Com um Cade cada vez mais técnico e com agentes econômicos mais sofisticados, as disputas narrativas tendem a se tornar mais frequentes (e já estão).
Por fim, importa dizer que narrativas importam e são necessárias. Elas estruturam a forma como entendemos o mundo e, no caso do direito concorrencial, a forma como julgamos condutas que afetam a decisão de milhões de consumidores. O perigo da história única, descrito por Chimamanda Ngozi Adichie, é também o perigo de um direito que não escuta, que escolhe um lado antes de ouvir o outro. Afinal, no direito, assim como na vida, nenhuma história é completa sozinha.
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Referências
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. 1ª Edição. Companhia das Letras. 64 páginas.
CASAGRANDE, Paulo Leonardo; AGUILLAR, Fernando Herren Fernandes; SILVA, Caio Mario da. Direito Concorrencial: doutrina, jurisprudência e legislação. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Edições Graal. 2005. 21ª Edição. 295 páginas.