COMENTÁRIOS À NOVA LEI DOS CRIPTOATIVOS LEI Nº 14.478/2022
Fevereiro de 2023
Joaquim Simões Barbosa e Daniela Bessone
A entrada em vigor da Lei nº 14.478/2022, primeira norma legal no País a regular a atividade dos operadores do mercado de criptoativos, está fixada para 21 de junho de 2023. Esse é o momento de compreendê-la e saber o que dela podemos esperar.
Embora seja indiscutível o avanço que representa, inaugurando um conjunto de regras destinadas a conferir maior grau de segurança aos investidores e a coibir, na medida do (tecnologicamente) possível, práticas financeiras criminosas na rede, é preciso enfatizar que o propósito do legislador foi o de estabelecer diretrizes, i.e., linhas gerais, o norte da regulamentação do setor, cujo detalhamento ficou a cargo “de órgão ou à entidade da Administração Pública federal definido em ato do Poder Executivo” – ao que tudo indica, o BACEN. A exceção são os dispositivos sobre matéria penal, como adiante se verá.
Apesar do apelido que já “pegou”, e que tomamos de empréstimo como título deste artigo, a Lei nº 14.478/2022 não regula os ativos virtuais propriamente ditos. Regula, isso sim, as atividades dos agentes desse mercado, isto é, das corretoras, instituições de custódia e administração e quem quer que participe da prestação de serviços financeiros relacionados a ativos virtuais.
A Lei nº 14.478/2022 e a CVM
Logo de início, o parágrafo único do art. 1º a Lei nº 14.478/2022 exclui expressamente do alcance da norma os criptoativos que sejam considerados valores mobiliários.
Nem sempre é tarefa simples determinar se um criptoativo em concreto se qualifica (ou não) como valor mobiliário, do tipo título ou contrato de investimento coletivo, caso em que sua oferta pública fica subordinada, nos termos da Lei nº 6.385/1976 e do Parecer de Orientação CVM nº 40/2002, à autoridade regulatória e fiscalizadora da CVM, inclusive quanto à obrigatoriedade de registro prévio na CVM tanto da emissora quanto da distribuição pública do criptoativo.
Com inspiração direta e declarada no Howey Test do direito norte-americano (SEC. v. W.J. Howey & Co), a CVM consolidou o entendimento de que são contratos de investimento coletivo os títulos que reúnam as seguintes características: (i) captação de recursos de investidores por meio de oferta pública (i.e., dirigida ao público em geral); (ii) aporte pelos investidores de dinheiro ou outro bem suscetível de avaliação econômica, inclusive criptomoedas; (iii) aplicação dos recursos captados em um empreendimento coletivo; (iv) expectativa de remuneração aos investidores; e (v) resultados esperados do investimento coletivo decorrentes preponderantemente dos esforços de terceiros, como, por exemplo, os desenvolvedores de criptoativos e sociedades relacionadas.
Mesmo quando a oferta pública de criptoativos é feita no exterior (alternativa que tem se tornado popular entre desenvolvedores de criptoativos brasileiros), a CVM considera ter jurisdição para instaurar processo administrativo sancionador e impor as penas aplicáveis, inclusive emissão de stop-orders e imposição de multas, quando o público-alvo for, ainda que não exclusivamente, o brasileiro.
Para que o lançamento dos criptoativos não se caracterize como oferta pública de valores mobiliários dirigida ao público brasileiro é necessário que o emissor e sua página na internet observem simultaneamente certas exigências, tais como: (i) aviso de que a distribuição se destina apenas aos países em que o patrocinador da página está autorizado a ofertar seus valores mobiliários, sendo tais países listados no próprio anúncio; (ii) medidas efetivas para impedir que investidores residentes no Brasil tenham acesso ao conteúdo da página; (iii) indicação direta ou indireta de que a página não foi criada para investidores residentes no Brasil, sendo certo que a divulgação de projeções econômicas em moeda brasileira ou incluindo o Brasil entre os países listados em algum formulário ou, ainda, a comparação entre a emissora dos valores mobiliários e emissoras brasileiras são considerados como indicação de que a página também se dirige a investidores residentes no Brasil; e (iv) inexistência, mesmo em idioma estrangeiro, de texto para atrair investidores residentes no Brasil (cf. Pareceres de Orientação CVM 32/2005 e 33/2005).
Na ausência dessas medidas, a CVM considera ter jurisdição para instaurar processo administrativo sancionador e impor as penalidades aplicáveis ao lançamento de valores mobiliários em desacordo com as disposições da Lei nº 6.385/1976, independentemente do país de sede do desenvolvedor.
Por outro lado, a despeito da recente edição do Parecer de Orientação CVM nº 40/2022, dedicado ao criptoativos, o desenvolvedor que deseje emiti-los em conformidade com a Lei nº 6.385/1976 simplesmente não tem como obter o registro da sua oferta pública na CVM, porque a regulamentação atualmente em vigor, concebida em vista das características dos títulos tradicionais (ou de suas variantes, digamos, convencionais), sem levar em conta as peculiaridades do mercado de criptoativos, é inconciliável com tal regulamentação.
A CVM sugere que o desenvolvedor interessado a procure para negociar, no caso a-caso, o registro do seu criptoativo, dando a entender que seria em tese possível que a autarquia concordasse em dispensar o atendimento a algumas das exigências aplicáveis aos emitentes de valores mobiliários convencionais. Mas não há, hoje, nenhum grau de segurança jurídica em relação ao resultado de tais negociações.
É bastante provável que a CVM venha a editar, no futuro próximo, regulamentação específica para esse tipo de ativo. Mas, por enquanto, a oferta pública de criptoativos que se qualifiquem como valores mobiliários só é possível no âmbito muito limitado do Sandbox Regulatório (https://conteudo.cvm.gov.br/legislacao/sandbox_regulatorio.html).
Em outras palavras, no regime atual, é praticamente impossível lançar legalmente no Brasil – ou mesmo fora do Brasil, mas mirando o investidor brasileiro – criptoativos que se qualifiquem como títulos ou contratos de investimento coletivo. A CVM está atenta ao problema e certamente buscará uma forma de evitar que o desenvolvedor brasileiro acabe alienado desse mercado, quando investidores brasileiros podem facilmente adquirir criptoativos emitidos por desenvolvedores baseados em outros países. Mas a Lei nº 14.478/2022 optou por não colocar a mão nesse vespeiro.
O que são ativos virtuais? NFTs são ativos virtuais?
O art. 3º da Lei nº 14.478/2022 definiu o termo ativos virtuais por exclusão, especificando o que não deve ser considerado ativo virtual.
A moeda eletrônica de que trata o inciso II é a moeda fiduciária (real, dólar, euro, etc.) armazenada em dispositivo ou sistema eletrônico que permita ao usuário final efetuar transação de pagamento.
No inciso III incluem-se, além dos sistemas de milhagem, também os chamados tokens de utilidade, caso, por exemplo, dos fan-tokens.
Ao excluir os valores mobiliários da definição de ativos virtuais, o inciso IV reafirma que a Lei nº 14.478/2022 não pretende alcançá-los, deixando à CVM total autonomia para a sua disciplina normativa. Nesse ponto, o legislador não adotou a melhor técnica: uma coisa é dizer que esses criptoativos específicos não estão sujeitos à disciplina da Lei nº 14.478/2022 (o que, aliás, está dito com clareza no parágrafo único do art. 1º); outra, bem diferente, é dizer que não sejam ativos virtuais. Se não são ativos virtuais, o que serão?
Ainda sobre o inciso IV, vale observar que ele exclui do conceito de ativos virtuais as representações de ativos regulados. Isso significa que estão (ou podem estar) sujeitos à Lei nº 14.478/2022 os ativos financeiros nativos de uma blockchain que não sejam representações de ativos regulados.
Como explica interessante relatório preparado pela OCDE intitulado “The Tokenisation of Assets and Potential Implications for Financial Markets” (www.oecd.org/finance/The-Tokenisation-of-Assets-and-Potential-Implications for-Financial-Markets.htm), ao lado do fenômeno da tokenização de ativos, que consiste na emissão de tokens que representam ou espelham ativos com existência real fora do ambiente da blockchain, e que serão (ou não) considerados ativos virtuais dependendo do ativo com existência real (regulado ou não regulado) que estejam representando ou espelhando, existem, ainda, os chamados tokens nativos, com existência exclusivamente na blockchain:
“Important distinctions need to be made between tokenised assets that exist off-the-chain and tokens that are “native” to the blockchain. “Native” tokens are built directly on-chain and live exclusively on the distributed ledger.” (página 12)
Além das criptomoedas – que são os tokens nativos clássicos –, naturalmente enquadradas pela nova lei no conceito de ativo virtual, existem outros tokens que representam ativos nativos, sem existência autônoma no mundo real, mas apenas nas plataformas de blockchain. Como esclarece a OCDE, estão nessa categoria os títulos representativos de direitos relativos a sociedades limitadas ou anônimas fechadas emitidos diretamente em uma blockchain:
“Examples of tokenization of assets native to the blockchain include tokenization of the equity of a nonlisted company, where the free float of the company is digitally represented by tokens and placed to investors on the blockchain. Such a transaction would constitute the equivalent of a digitalized on-chain private placement of securities. A similar structure would apply to private debt placements.” (página 13) Uma espécie de “digitalized on-chain private placement of securities” traria inúmeros e interessantíssimos benefícios, tanto no aspecto da comercialização das ações, com a eliminação de diversos intermediários (bolsas de valores, custodiantes, etc.), como no do exercício dos direitos inerentes ao ativo (recebimento de dividendos, convocação para assembleias, participação em votações sociais, etc.). Esse tipo de token não constituiria ativo virtual, não ao menos para os fins da Lei nº 14.478/2022.
Logicamente, a sua emissão depende de reforma das leis que regulam as sociedades anônimas e limitadas. Além disso, estaria de qualquer forma sujeita ao regime da Lei nº 6.385/76 e à supervisão e controle da CVM, porque embora sem representar um ativo do mundo real, seria, ele próprio, um valor mobiliário, o que atrairia a incidência do parágrafo único do art. 1º. De qualquer modo, portanto, tais ativos nativos não se qualificariam como ativos virtuais para os fins da Lei nº 14.478/2022.
Mais uma observação importante sobre o inciso IV:sua redação sugere que, além das moedas eletrônicas referidas no inciso II, também teriam sido excluídas do conceito de ativo virtual a imensa maioria das stable coins, na medida que representam ativos financeiros “cuja emissão, escrituração, negociação ou liquidação está prevista em lei ou regulamento”, mais comumente, alguma moeda fiduciária. Caso essa interpretação venha a prevalecer na aplicação prática da lei, as stable coins ficarão no limbo normativo – nem sujeitas à Lei nº 14.478/2022, nem à CVM – o que poderá gerar certa insegurança jurídica: como se sabe, as atividades das prestadoras de serviços de ativos virtuais brasileiras dependem em grande medida da possibilidade de utilização dessa modalidade de criptoativo.
Convém notar que o simples fato de asstable coins estarem excluídas do conceito de ativo virtual não significa, necessariamente, que as prestadoras de serviços virtuais estejam impedidas de operar com elas. Afinal, as prestadoras de serviços virtuais não precisam operar exclusivamente com ativos virtuais. Esse é mais um dos muitos aspectos que dependerão do que vier a ser determinado pela autoridade competente, no caso, o próprio BACEN.
Finalmente, os NFTs parecem ter ficado de fora do conceito de ativos virtuais, uma vez que não se enquadram em qualquer das hipóteses elencadas no art. 3º e seus incisos.
As diretrizes
O art. 4º da Lei nº 14.478/2022 enfatiza o óbvio: qualquer atividade econômica exercida no País deve observar os princípios constitucionais, como livre iniciativa e livre concorrência, e as normas infraconstitucionais em vigor, como as que cuidam da segurança da informação, da proteção de dados pessoais e da proteção e defesa de consumidores (desde que presentes as respectivas hipóteses de incidência), devendo-se buscar evitar, na máxima extensão possível, que investidores sejam intencionalmente lesados ou que o mercado de criptoativos funcione como uma autoestrada livre para o trânsito de recursos destinados ao financiamento de atividades ilícitas.
Evidentemente, o quase-anonimato nas transações com criptoativos não favorece a implementação das diretrizes do art. 4º: é praticamente impossível afastá-lo nas transações P2P e/ou conduzidas nas DEX, que a Lei nº 14.478/2022 não tem como facilmente alcançar. Quanto às CEX, é certo que estarão sujeitas, a exemplo das instituições financeiras, a revelar, em determinadas circunstâncias específicas, a identidade dos seus clientes e respectivos ativos.
Ressalte-se, mais uma vez, que o art. 4º trata de diretrizes, de princípios, de balizas, de propósitos. O regramento destinado a dar-lhes concretude será ainda concebido pelo BACEN, na qualidade de órgão regulador. Os mecanismos para alcançá-los ainda estão em aberto e, nesse processo, espera-se que haja espaço para discussão e participação da sociedade civil.
Segregação patrimonial: uma ausência de peso
A penúltima versão do PL 4401/2021, aprovada no Senado, incluía entre as diretrizes a serem observadas a segregação patrimonial, i.e., a separação dos criptoativos que pertencem à CEX dos criptoativos dos seus clientes investidores. O mercado assustou-se, argumentando que, na prática, seria extremamente complexo e oneroso criar uma carteira específica para cada investidor em cada blockchain por ele utilizada. Diante da polêmica instaurada, a segregação patrimonial acabou excluída da lista de diretrizes.
Na nossa opinião, a reação do mercado foi um pouco exagerada. Quem disse que a segregação patrimonial dependeria necessariamente da criação de uma carteira específica para cada cliente em cada blockchain? Por que não se pode simplesmente adotar para a negociação de ativos virtuais mecânica análoga à adotada nas operações com títulos e ações negociados em Bolsa, o que, aliás, é feito hoje?
Como se sabe, no sistema de custódia fungível de ações, cada investidor tem uma conta na sua corretora que, por sua vez, tem sua própria conta na instituição custodiante. As operações realizadas na [B]3 são refletidas nas contas pertinentes pelas respectivas entidades, sem que seja necessário abrir contas específicas para cada investidor na [B]3. Exatamente o mesmo ocorre nas operações realizadas em blockchains, com a segregação da titularidade dos ativos sendo feita ao nível das CEX.
É certo, contudo, que depende de lei a regra de que os recursos dos investidores indicados na carteira da CEX não respondem pelas obrigações da própria CEX. Em outras palavras, é preciso que haja segregação patrimonial regulada em lei para que o patrimônio do investidor não possa ser alcançado pelos credores da corretora.
Um exemplo bem eloquente é o da ruidosa e pedagógica quebra da FTX, de Sam Bankman-Fried, CEX com valor estimado, até recentemente, em 32 bilhões de dólares. A ausência de efetiva segregação patrimonial tornou possível que o patrimônio dos clientes, entregue à corretora na aquisição de criptoativos, fosse utilizado indevidamente em suas operações especulativas, cujo insucesso acabou por reduzir a FTX a pó e, com ela, todo o dinheiro investido.
Teria sido, assim, bastante positivo que a Lei nº 14.478/2022 tivesse mantido a segregação patrimonial entre as diretrizes a serem observadas na prestação de serviço de ativos virtuais.
Quem são os prestadores de serviços de ativos virtuais? Como ficam as DEX?
Não há dúvida de que as Centralized Exchanges (CEX) se qualificam como prestadoras de serviços de ativos virtuais. O que dizer, porém, das operações feitas nas Decentralized Exchanges (DEX), que constituem meros programas, ferramentas automatizadas inteiramente descentralizadas?
Evidentemente, a Lei nº 14.478/2022 somente pode ser aplicada a entidades regularmente constituídas, com personalidade jurídica própria, como as CEX. Por outro lado, não é razoável imaginar que o legislador pretenda impedir que investidores brasileiros utilizem as DEX em suas transações, o que seria, na prática, impossível. Não se sabe ainda se e como o BACEN tentará contornar de algum modo o problema.
Além das CEX, enquadra-se nessa categoria qualquer pessoa jurídica que execute, em nome de terceiros, pelo menos um dos serviços de ativos virtuais elencados (exemplificativamente) nos incisos do art. 5º.
Um ponto interessante é o da territorialidade. Uma coisa é a jurisdição sobre o valor mobiliário, outra é a jurisdição sobre a corretora. Um valor mobiliário lançado nos EUA direcionado ao público brasileiro pode estar sujeito a registro na CVM, mas o Goldman Sacks não está sujeito à supervisão da CVM apenas porque tem clientes brasileiros. A ver como o BACEN tratará essa questão.
Competência do órgão ou à entidade reguladora
Os arts. 6º e 7º da Lei nº 14.478/2022 tratam do órgão ou entidade reguladora responsável pela disciplina do funcionamento e supervisão da atividade de prestação de serviços de ativos virtuais. Entre as suas atribuições, elencadas no art. 7º, destaca-se a de dispor sobre as hipóteses em que as atividades ou operações com ativos virtuais serão incluídas no mercado de câmbio ou em que deverão submeter-se à regulamentação de capitais brasileiros no exterior e capitais estrangeiros no País.
O propósito do legislador com essa regra não está muito claro, já que é inerente à natureza das criptomoedas a sua livre conversibilidade em moeda fiduciária de diferentes países do mundo (ainda que em várias jurisdições as CEX sejam proibidas), sendo difícil distinguir operações que devam ser incluídas no mercado de câmbio ou se submeter à regulamentação de capitais estrangeiros. Por exemplo, o investimento que um estrangeiro faça no Brasil com reais por ele obtidos mediante conversão de criptomoedas, sem realização de um contrato de câmbio, não deveria ser tratado como capital estrangeiro sujeito a registro no BACEN pois não afeta as reservas internacionais de divisas do país.
As instituições financeiras tradicionais que já operem ou pretendam passar a operar com ativos virtuais não precisarão segregar tal operação em uma entidade distinta.
A elas e a todos os demais prestadores de serviços de ativos virtuais serão concedidos prazos não inferiores a 6 meses para adequação à nova lei, a contar não da sua entrada em vigor, mas sim da vigência da regulamentação a ser futuramente editada pelo BACEN. Esse prazo não se confunde, portanto, com a vacatio legis do art. 14.
Crimes relacionados à utilização de ativos virtuais
Os artigos da Lei nº 14.478/2022 com maior grau de concretude são os que versam sobre matéria penal.
Por meio da inclusão do art. 171-A no Código Penal, o art. 10 da Lei nº 14.478/2022 cria um novo tipo penal – fraude com a utilização de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros –, ao qual atribuiu a pena de 4 a 8 anos de reclusão e multa.
O art. 11 da Lei nº 14.478/2022 equipara às instituições financeiras, para os fins da Lei do Colarinho Branco (Lei nº 7.492/1986), a pessoa jurídica que ofereça serviços referentes a operações com ativos virtuais, inclusive intermediação, negociação ou custódia.
A Lei do Colarinho Branco passa a tratar como circunstância agravante do crime de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, tipificado em seu art. 1º, o seu cometimento de forma reiterada por meio da utilização de ativo virtual, levando ao aumento da pena de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços).
A Lei do Colarinho Branco passa a incluir as prestadoras de serviços de ativos virtuais no rol das pessoas obrigadas a:
(i) identificar seus clientes e manter cadastro atualizado, nos termos de instruções emanadas das autoridades competentes;
(ii) manter registro de toda transação em moeda nacional ou estrangeira, títulos e valores mobiliários, títulos de crédito, metais, ativos virtuais, ou qualquer ativo passível de ser convertido em dinheiro, que ultrapassar limite fixado pela autoridade competente e nos termos de instruções por esta expedidas; esse registro será efetuado também quando o cliente e partes relacionadas tiverem realizado, em um mesmo mês-calendário, operações com uma mesma pessoa, conglomerado ou grupo que, em seu conjunto, ultrapassem o limite fixado pela autoridade competente;
(iii) adotar políticas, procedimentos e controles internos, compatíveis com seu porte e volume de operações, que lhes permitam atender ao disposto a essas e outras exigências da Lei 9.613/1998;
(iv) cadastrar-se e manter seu cadastro atualizado no órgão regulador ou fiscalizador e, na falta deste, no Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), na forma e condições por eles estabelecidas;
(v) atender às requisições formuladas pelo Coaf na periodicidade, forma e condições por ele estabelecidas, cabendo-lhe preservar, nos termos da lei, o sigilo das informações prestadas.
Nesse ponto, convém lembrar que a existência das DEX e a forma como funcionam as plataformas de blockchain tornam a efetividade prática desses controles muito limitada. Hoje, nada impede que o investidor crie uma carteira privada, adquira uma certa quantidade de uma stable coin em uma CEX e a instrua a transferi-la para sua carteira privada. Desse ponto em diante, o destino dos ativos, ainda que públicos dentro da blockchain, se sujeita ao anonimato das carteiras privadas, tornando a identificação pessoal praticamente impossível.
Em resumo, a CEX perde qualquer possibilidade de acompanhar novas operações garantindo a identificação pessoal das carteiras posteriormente utilizadas para recebimento dos ativos.
Isto não é muito diferente do que ocorre no mundo tradicional, onde as instituições financeiras deixam de ter informações sobre os ativos a partir do momento em que eles são retirados da sua guarda. A diferença é que, no mundo das finanças tradicionais, os recursos passam de uma instituição supervisionada para outra instituição supervisionada, enquanto, no caso das blockchains, os ativos passam das CEX, que estão sujeitas à supervisão governamental, para as carteiras privadas e para as DEX, que não estão.
O investidor também pode transacionar os ativos utilizando apenas as DEX, que garante o anonimato, sendo a operação, portanto, praticamente irrastreável. A utilização de métodos de rastreio altamente complexos e dispendiosos certamente só será justificável em casos muito particulares.
Além das obrigações mencionadas acima, a Lei do Colarinho Branco também passa a incluir as prestadoras de serviços de ativos virtuais no rol das pessoas obrigadas a:
(i) dispensar especial atenção às operações que, nos termos de instruções emanadas das autoridades competentes, possam constituir-se em sérios indícios dos crimes previstos na Lei nº 9.613/1998, ou com eles relacionar-se;
(ii) comunicar ao Coaf, abstendo-se de dar ciência de tal ato a qualquer pessoa, inclusive àquela à qual se refira a informação, no prazo de 24 horas, a proposta ou realização: (a) de todas as transações mencionadas no item 4(ii) acima, acompanhadas da identificação mencionada no item 4(i) acima; e (b) das operações “suspeitas”, mencionadas em 5(i) acima.
A Lei do Colarinho Branco passa a incluir as transações com ativos virtuais entre aquelas que devem ser objeto de registro pelos agentes do mercado.
Em grande síntese, a Lei do Colarinho Branco foi ajustada em vários pontos, sempre com o objetivo de estender as suas disposições às operações com ativos virtuais e às atividades dos respectivos operadores.
O Código de Defesa do Consumidor e os ativos virtuais
O art. 13 explicita a aplicação do CDC, “no que couber”, às operações conduzidas no mercado de ativos virtuais, o que, aliás, já estava previsto no inciso IV do art. 4º.
Ainda que a Lei nº 14.478/2022 nada dissesse a respeito do assunto, a aplicação do CDC decorreria automaticamente da própria existência de relação de consumo. A não aplicação do diploma consumerista, se e quando relação de consumo houver, é que demandaria norma legal específica (parece-nos que seria extremamente forçada a interpretação de que, sendo norma especial, dirigida especificamente à prestação de serviços de ativos virtuais, a Lei nº 14.478/2022 afastaria a aplicação da norma geral consumerista a tais serviços).
Mas é fundamental que a locução “no que couber” seja efetivamente observada, por exemplo, para afastar qualquer tentativa de aplicar o CDC às operações conduzidas no mercado de ativos virtuais quando não houver relação de consumo, o que é perfeitamente possível: basta que o tomador dos serviços virtuais não seja “consumidor” para os fins do art. 2º do CDC, isto é, não seja o destinatário final na relação de prestação de serviços de ativos virtuais.
Vigência
O art. 14 estipula vacatio legis de 6 meses, que não se confunde com o prazo mínimo de 6 meses que o art. 9º confere às prestadoras de serviços de ativos virtuais para se adequarem à regulamentação a ser editada pelo BACEN. Em outras palavras, a Lei nº 14.478/2022 pode entrar em vigor antes do encerramento do prazo de que as prestadoras de serviços de ativos virtuais disporão para se adequarem às regras infralegais.