Autoprodução e Geração Distribuída: semelhanças, distinções e aplicação da Convenção Arbitral da CCEE
Joaquim Simões Barbosa e Daniela Bessone
Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1FHTUQKdBsbqXbuJhYtpf3KXBJ9eAy5kr/view
Resumo: A partir de uma análise histórica e comparativa da autoprodução e da geração distribuída, este trabalho busca responder como a ‘Convenção de Arbitragem celebrada entre os Agentes e a CCEE’ se aplica aos conflitos que podem surgir em cada um desses modelos de geração de energia. O artigo
identifica as particularidades de cada modelo e suas implicações para a resolução de disputas no âmbito do Setor Elétrico, bem como questões específicas sobre a própria Convenção de Arbitragem da CCEE.
Palavras-chave: Energia; Autoprodução; Geração Distribuída; Arbitragem e Convenção; CCEE.
Abstract: This paper employs a historical and comparative analysis of self-generation and distributed generation to explore
Revista do Direito da Energia, n° 18, jun. 2025 p. 261 – 291 how the “Arbitration Agreement signed between Agents and CCEE” addresses conflicts that may arise within each of these electricity generation models. It examines the unique specificities of each model and their implications for dispute resolution in the electricity sector, as well as specific issues related to the CCEE Arbitration Agreement.
Keywords: Energy; Self-generation; Distributed Generation; Arbitration and Convention; CCEE.
- Introdução
Existem dois caminhos para o consumidor que quer gerar, ele próprio, a energia elétrica que consome, ou ao menos uma parte da sua demanda: a autoprodução e a geração distribuída. Este artigo procura explicar as semelhanças e distinções entre essas duas figuras, a partir de seu contexto histórico, para ao final alcançar a questão relativa à aplicação da “Convenção de Arbitragem celebrada entre os Agentes e a CCEE”203 no que diz respeito a cada um desses dois caminhos. - Colocando o Assunto em Contexto
2.1. As Reformas Legislativas do Setor Elétrico A energia elétrica é um tipo muito especial de
“mercadoria”, para alguns, “serviço”, para outros. Não tem, por exemplo, forma física palpável. Resulta do movimento de cargas elétricas, principalmente elétrons, que, ao se moverem
através de um condutor, como um fio, geram corrente elétrica.
O “consumo” da energia se dá com a efetiva utilização dessa corrente elétrica na realização de um trabalho, como acender lâmpadas ou mover motores. A energia elétrica é gerada, distribuída e consumida sem jamais ser estocada ou armazenada, o que a diferencia das mercadorias tangíveis.
Mas a energia elétrica também é especial porque sua geração, transmissão, distribuição e consumo se fazem com utilização de uma infraestrutura robusta e dispendiosa, cuja implantação e operação envolvem pesados investimentos de capital, somente amortizáveis no longo prazo.
A energia elétrica é, em boa medida, gerada por usinas de grande porte, frequentemente localizadas em áreas remotas do país, a partir das quais é “transportada” por imensas linhas de transmissão de alta tensão até subestações rebaixadoras de tensão, de propriedade das distribuidoras, próximas aos
locais que concentram as unidades de consumo – em geral, grandes centros urbanos. Esse ponto, em que ocorre o rebaixamento da tensão a níveis seguros para a distribuição, marca o início da rede de distribuição de propriedade da concessionária local.
A rede em baixa tensão da distribuidora local liga sua subestação a cada unidade consumidora, formando uma formidável teia, que se estende por todos os logradouros das várias cidades e localidades da região, alcançando cada uma das residências e estabelecimentos comerciais, industriais e de serviços neles situados.
As usinas, as linhas de transmissão e as redes de distribuição pertencem a diferentes entidades, as quais, na maioria das vezes, integram o Sistema Interligado Nacional – SIN, operado, de forma centralizada, pelo Operador Nacional do Sistema – ONS205. É o ONS quem “despacha” as usinas, para atendimento da demanda do sistema, isto é, define quais usinas fornecerão a energia em determinado momento. E faz isso de forma a otimizar o uso do sistema, levando em consideração tanto o custo, quanto a segurança da operação. Trata-se de atividade altamente técnica, em que qualquer descuido pode ter consequências devastadoras, como apagões e incêndios.
Com a maioria dos agentes conectados ao SIN, operando de forma centralizada sob o comando do ONS, com o propósito de assegurar a otimização do sistema, e com a presença dominante de hidrelétricas, que compartilham o risco hidrológico através do Mecanismo de Realocação de Energia – MRE206, a atividade do setor assume extraordinário nível de complexidade, bem ilustrado pelo funcionamento da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE207, uma espécie de câmara de contabilização e liquidação de
operações, que registra os compromissos contratuais dos diferentes agentes e confere o seu efetivo desempenho, apura as eventuais diferenças entre montantes transacionados e efetivamente disponibilizados ou consumidos e cuida para que seu devido acerto financeiro ocorra a tempo e a hora.
Não é à toa que, durante muito tempo, o setor foi quase totalmente operado por entidades públicas, pertencentes à União Federal ou aos diferentes estados da Federação, que atuavam em todas as fases do ciclo econômico da energia, da geração à distribuição. Isso certamente facilitava o planejamento e operação do complexo sistema, mas não era favorável à busca de uma maior eficiência no seu
desenvolvimento. Por isso, a partir da última década do século XX – a chamada era das privatizações o país passou a adotar uma série de medidas tendo por objetivo a permitir maior participação de empresas privadas, visando ao estabelecimento de um regime de crescente competição no setor.
Primeiramente, a legislação vedou a verticalização completa das atividades de geração, transmissão e distribuição em uma única empresa, com o objetivo de evitar monopólios e assegurar a eficiência e a qualidade do serviço. De acordo com as regras então aprovadas, as empresas poderiam até
desempenhar mais de uma dessas diferentes atividades, mas elas precisariam ficar segregadas, com criação de unidades de negócio distintas para cada atividade, de forma a garantir
transparência e evitar subsídios cruzados. As distribuidoras passaram a ter grandes restrições quanto à atuação no setor de geração de energia, o que passou a ser admitido apenas de forma excepcional.
Em seguida, foi executado um grande programa de privatização no Setor Elétrico, parte do Programa Nacional de Desestatização (PND)210, que começou com a venda de empresas de distribuição de energia controladas por governos estaduais. Este foco inicial no segmento de distribuição ocorreu porque ele era visto como o mais atrasado em termos de eficiência e investimentos e, ao mesmo tempo, menos complexo do que os setores de geração e transmissão. Além disso, como a distribuição de energia apresentava uma interface direta com os consumidores, era uma área em que as empresas privadas poderiam gerar receitas com mais facilidade. Após essa fase inicial com as distribuidoras, a privatização se expandiu para empresas de geração e, mais tarde, para o setor de transmissão. Além disso, a legislação foi alterada, com a adoção de mecanismos que favoreceram o estabelecimento de um regime de efetiva competição entre os diferentes agentes do setor.
Um desses mecanismos foi a criação do Mercado Atacadista de Energia – MAE211, depois substituído pela CCEE212, tendo como objetivo facilitar a negociação de energia elétrica entre geradores e distribuidores, promovendo maior eficiência e competitividade no mercado. Outra novidade introduzida na legislação, com essa finalidade, foi a figura do “consumidor livre” (em oposição ao
“consumidor cativo”), conceito que acabou levando à criação dos Ambientes de Contratação Regulada e Livre, parte da reforma de 2004213 e do Novo Modelo do Setor Elétrico com ela inaugurado.
Esses conceitos, de consumidor cativo e de consumidor livre e de Ambiente de Contratação Regulado – ACR e Ambiente de Contratação Livre – ACL são centrais para se entender as distinções entre Autoprodução e Geração Distribuída, como veremos mais adiante. Tendo em vista o vulto do investimento necessário à implantação de uma rede de distribuição, bem como o fato de
ser inviável, do ponto de vista econômico, a existência de mais de uma rede na mesma região, as concessionárias do serviço público de distribuição de energia elétrica são titulares de um
monopólio legal, que lhes assegura exclusividade no fornecimento da energia destinada aos consumidores situados na sua área de concessão.
A reforma da legislação aprovada na década final do século XX abriu importante exceção a esse monopólio, introduzindo a figura do consumidor livre, assim entendido aquele que tivesse demanda contratada de maior vulto (originalmente superior a 3 MW e, hoje, a 500 kW)214. O
consumidor que preenchesse esse e outros requisitos previstos na legislação passava a poder contratar o fornecimento das suas necessidades de energia diretamente junto a geradores ou junto a um novo tipo de agente do setor, também criado pela reforma legislativa: o comercializador de energia.
Mesmo que o consumidor livre possa escolher seu fornecedor, ele continua tendo que utilizar a infraestrutura da distribuidora local para que a energia chegue até sua unidade
consumidora. Por isso, ele deve pagar uma tarifa correspondente ao Uso do Sistema de Distribuição (TUSD) ou ao Uso do Sistema de Transmissão (TUST). A primeira se aplica quando o consumidor está conectado à rede de distribuição da concessionária local e, a segunda, quando ele está conectado diretamente à rede de transmissão.
Esses encargos são pagos à concessionária responsável pela rede utilizada pelo consumidor, em
contraprestação à sua obrigação de cedê-la para receber a energia do fornecedor e transportá-la até o usuário final, independentemente do contrato de fornecimento de energia
por este celebrado diretamente com o gerador ou comercializador. Estabeleceu-se, portanto, no mercado de energia livre, uma clara separação entre o fornecimento de energia (objeto de contrato firmado diretamente entre o consumidor e o gerador ou comercializador), e o uso da infraestrutura para transportar essa energia (objeto de contrato para uso da rede, celebrado com a concessionária titular da rede utilizada, distribuidora ou transmissora).
Apesar de o consumidor livre poder adquirir a energia de terceiros, a qualidade do fornecimento (como interrupções ou oscilações) ainda é de responsabilidade da concessionária que opera a rede, de acordo com as regras de regulação do setor. O consumidor livre, portanto, continua dependente da concessionária para ter a garantia da entrega física da energia contratada.
Em resumo, o consumidor livre pode negociar o seu suprimento de energia diretamente com geradores ou comercializadores, mas precisa da infraestrutura da concessionária local para que a energia contratada chegue ao seu ponto de consumo.
2.2. Os Ambientes de Contratação
Como uma consequência natural do surgimento do consumidor livre, houve, em 2004, a criação de dois ambientes de contratação, claramente segmentados. Pode-se dizer, de uma forma bastante genérica, que o Ambiente de Contratação Regulado – ACR é o ambiente em que atuam os consumidores
cativos, alcançados pelo monopólio de que gozam as distribuidoras, enquanto o Ambiente de Contratação Livre – ACL é o ambiente em que trafegam os consumidores livres. São dois mundos muito diferentes.
2.2.1. O ACR
A existência do monopólio torna imperativo que a comercialização da energia seja pesadamente regulada. As distribuidoras de energia são concessionárias de serviço público, funcionando com base nos princípios da eficiência, da continuidade do serviço público, da modicidade tarifária, da universalidade e da garantia do equilíbrio econômico-financeiro de suas atividades. Isso impacta de forma significativa tanto a aquisição de energia pelas distribuidoras quanto a sua venda aos consumidores cativos.
A agência reguladora do setor, ANEEL, controla de perto e no detalhe a projeção de demanda do conjunto dos consumidores cativos de cada distribuidora e a forma como essa empresa pretende atendê-la, verificando e tomando providências para que existam contratos de suprimento junto aos geradores contemplando montantes suficientes de energia. Para esse fim, a ANEEL conta com a ajuda da
Empresa de Pesquisa Energética (EPE)217, estatal vinculada ao Ministério de Minas e Energia (MME), que tem como função realizar estudos e planejamentos relacionados ao setor de energia elétrica, petróleo, gás natural, carvão, fontes renováveis e eficiência energética, para subsidiar as decisões estratégicas e o desenvolvimento do setor energético no Brasil.
Com base nesse sofisticado planejamento, a ANEEL, entre outras coisas, organiza a realização de leilões para a contratação em longo prazo do suprimento da demanda projetada pelas distribuidoras. Esses leilões são realizados com antecedência de alguns anos para permitir que os contratos celebrados com base neles possam ser usados como lastro para o financiamento de novos projetos de geração.
Todos os custos de operação das distribuidoras são acompanhados pela ANEEL, que os adota como base para a determinação e revisão anual das tarifas a serem pagas pelos consumidores cativos. Esse é um processo complexo, pois em relação à parte dos custos, que a agência entende não ser gerenciável, o repasse dos aumentos é automático; mas em relação a outra parte, aquela dos custos gerenciáveis, dependendo do contrato de concessão, não há repasse automático, mas apenas reajuste pela aplicação de um índice de inflação contratualmente especificado.
Na determinação da tarifa a ser paga pelo consumidor cativo entram ainda o custo da transmissão e da operação da rede de distribuição, os encargos setoriais, os tributos, mecanismos tarifários para enfrentamento de momentos de maior risco hidrológico etc.
Como resultado, os consumidores cativos pagam pela – energia que consomem – uma tarifa composta por diversos elementos que refletem os custos e encargos envolvidos na
prestação do serviço, tais como:
a) Custos de Geração (TE – Tarifa de Energia), referentes à compra da energia elétrica gerada pelas
usinas e vendida às distribuidoras, custos esses repassados ao consumidor final;
b) Transmissão (TUST – Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão), referente ao custo da operação,
manutenção e ampliação da rede de transporte da energia elétrica das usinas geradoras até as
subestações das distribuidoras, através do sistema de transmissão em alta tensão;
c) Distribuição (TUSD – Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição), referente ao custo da operação,
manutenção e ampliação da rede de distribuição de energia elétrica, responsável por levar a energia até
as residências e instalações comerciais e industriais;
d) Encargos Setoriais, referentes aos valores cobrados para financiar políticas públicas e manter o
funcionamento do Setor Elétrico, como a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), o Programa de
Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (PROINFA) e outros encargos previstos em lei;
e) Tributos, incluindo o ICMS e PIS/Cofins; e
f) Bandeiras Tarifárias, mecanismo que captura os custos adicionais com a geração de energia elétrica
em momentos em que há necessidade de acionamento de usinas termelétricas (mais caras). As
bandeiras tarifárias podem ser: verde (sem cobrança adicional), amarela, ou vermelha (patamar 1 ou 2),
indicando um custo adicional por kWh consumido.
Esses componentes variam conforme o perfil do consumidor cativo (residencial, industrial e comercial), a região do país e as condições específicas do mercado de energia elétrica no período.
Em 2012, outra novidade importante foi introduzida pela ANEEL no ACR: a geração distribuída. A Resolução Normativa da ANEEL daquele ano, que estabeleceu as regras e condições para o desenvolvimento da microgeração e minigeração distribuída no Brasil, permite que consumidores
de energia elétrica instalem sistemas de geração própria, como painéis solares, eólicos e outras fontes, conectados à rede elétrica, para suprir parte ou a totalidade de sua demanda de
energia.
Essa Resolução Normativa criou o sistema de compensação de energia, que permite que o consumidor injete o excedente de energia que gerar na rede da concessionária, acumulando créditos que podem ser usados em meses subsequentes para abater o seu consumo de energia. A resolução foi um marco importante para o desenvolvimento de unidades geradoras de energia solar e eólica, e para a
descentralização da matriz energética brasileira. Voltaremos ao tema mais adiante neste artigo.
2.2.2. O ACL
O ACL, como mencionado, é um outro mundo. Como o consumidor livre tem liberdade para adquirir sua energia de diferentes fontes, vigora nesse ambiente um regime de ampla concorrência, onde não existe a problemática gerada pelo monopólio que vigora no universo do ACR.
Isso não significa que a regulação não esteja presente. Porque, com as características do Setor Elétrico que descrevemos aqui, mesmo nesse ambiente restrito, onde vigora maior liberdade, a regulação se faz necessária em muitos aspectos.
A começar pelo próprio critério que permite ao consumidor optar pela condição de consumidor livre, que é fixado em lei, e que vem sendo relaxado ao longo dos anos. O conceito de consumidor livre foi introduzido pela Lei no 9.074/1995, a qual permitiu, pela primeira vez, que consumidores com maior demanda de energia elétrica pudessem escolher livremente o seu fornecedor. Nessa época, a exigência mínima era uma demanda contratada superior a 3 MW.
Com a criação do Novo Modelo do Setor Elétrico em 2004220, o governo passou a promover uma maior flexibilização nas regras de adesão ao ACL. A demanda mínima para qualificação foi progressivamente reduzida, abrindo o mercado para novos consumidores. Abaixo, os marcos mais importantes
nesse período:
a) 2003 a 2010: a demanda mínima para ser classificado como consumidor livre foi reduzida de 3
MW para 2 MW, ampliando o acesso ao mercado livre para indústrias de médio porte e outros grandes
consumidores; e
b) 2010 a 2018: a demanda mínima foi novamente reduzida para 1 MW, o que permitiu a entrada de mais
empresas no ACL, incluindo um maior número de grandes consumidores comerciais e industriais.
Em paralelo à evolução dos requisitos para a caracterização de um consumidor livre, surgiu a figura do
“consumidor especial”. Essa categoria abrange consumidores com demanda contratada entre 500 kW e 1 MW que podem adquirir energia exclusivamente de fontes incentivadas (renováveis), como usinas eólicas, solares, de biomassa ou pequenas centrais hidrelétricas (PCHs). A criação do consumidor especial foi um importante passo para ampliar o acesso ao mercado livre, especialmente para consumidores médios.
O governo brasileiro vem promovendo uma expansão gradual do ACL para incluir um número ainda maior de consumidores. Em 2022, o Ministério de Minas e Energia (MME) anunciou planos de reduzir gradualmente a demanda mínima para consumidores aderirem ao ACL. A primeira redução, que teve início em 1° de janeiro de 2024, permitiu que consumidores com demanda contratada mínima de 500 kW
acessem o ACL, independentemente da fonte de geração da energia adquirida221. Já para 2026, existe a perspectiva de ampliar o ACL para admitir o ingresso de consumidores com demanda inferior a 500 kW, promovendo uma maior democratização do mercado livre, o que poderia incluir até mesmo pequenos comércios e, eventualmente, consumidores residenciais.
Por outro lado, ainda que possa livremente adquirir a energia de qualquer fornecedor, o consumidor livre continua dependendo da distribuidora para receber a energia, pois, como explicamos acima, a energia precisa chegar até a unidade de destino pela rede de distribuição daquela concessionária.
Há, nesse aspecto, novamente um ambiente de monopólio, o que torna necessária a regulação da ANEEL
para estabelecer preços e condições de prestação do serviço.
Além disso, o consumidor livre participa do mercado de curto prazo da CCEE, que é altamente regulado.
O consumidor cativo é atendido, em todas as suas necessidades, pela distribuidora local (exceto quando participa da geração distribuída, na parte dessas necessidades que é atendida por sua própria geração). Ainda que existam diferentes contratos possíveis entre o consumidor cativo e a distribuidora, de uma forma geral, o consumidor paga pela energia que consome, de acordo com a correspondente tarifa
unitária aprovada pela ANEEL, a qual independe de seu consumo ter sido maior ou menor.
Com o consumidor livre, a situação é bastante diferente. Ele tem direito a receber todo o volume de energia que tiver adquirido junto a um ou mais fornecedores (geradoras ou comercializadoras), mas o que acontece se ele demandar e consumir um volume diferente – maior ou menor – do que a
soma dos volumes fixados nos seus contratos? É aí que entra o mercado de curto prazo da CCEE.
O mercado de curto prazo da CCEE é, na verdade, um mercado de diferenças, de tal modo que as diferenças, entre o que foi contratado entre os vários agentes do setor e o que foi efetivamente disponibilizado e consumido por esses mesmos agentes, são verificadas e acertadas no âmbito desse
mercado.
A participação no mercado de curto prazo da CCEE é obrigatória para todos os agentes que geram, comercializam ou consomem energia de forma direta no ambiente de mercado, com uma única exceção: os consumidores cativos (aqueles que compram energia exclusivamente de distribuidoras no ACR) não participam diretamente do mercado de curto prazo, pois mantêm relação direta com a distribuidora e não com o mercado livre de energia.
Em outras palavras, se o consumidor livre, que obrigatoriamente participa da CCEE, demandar e consumir um volume maior do que a soma dos volumes constantes de todos os seus contratos, que devem ser registrados na CCEE, a diferença será paga por esse consumidor livre ao mercado pelo chamado Preço de Liquidação de Diferenças – PLD. E o contrário também é verdade: o consumo em volume inferior ao da soma dos volumes contratados leva ao recebimento pelo consumidor livre da diferença a menor valorada pelo PLD.
Finalmente, o consumidor livre ou especial que deseje gerar, ele próprio, a totalidade ou uma parte da energia elétrica que consome, pode obter uma autorização da ANEEL para se tornar um autoprodutor, passando a operar sua própria unidade geradora. Diferentemente do que acontece com o consumidor
cativo que participa da geração distribuída, que não pode alienar a terceiros eventuais excedentes da sua geração, o autoprodutor pode. Voltaremos ao tema mais adiante neste artigo.
- As duas modalidades de geração para consumo
próprio
3.1. Geração Distribuída
Nesse ponto, já está claro que geração distribuída é a modalidade de geração para consumo próprio disponível ao consumidor cativo, participante do ACR, e que a principal diferença dela para a autoprodução é o fato de que o consumidor cativo gerador participa de um sistema de
compensação de energia em que a energia excedente injetada na rede da concessionária dá origem apenas a créditos que podem ser usados tão somente para abater o gasto com seu próprio consumo futuro de energia, enquanto o consumidor livre ou especial que seja autoprodutor pode alienar no mercado esse excedente de geração para terceiros.
Funciona assim: a central geradora do consumidor cativo injeta energia na rede da distribuidora, da qual o mesmo consumidor cativo retira a energia que consome, participando de um Sistema de Compensação de Energia Elétrica e usufruindo de algumas condições favorecidas, que normalmente resultam em um custo de aquisição de energia mais baixo. Eventual diferença entre injeções e retiradas de energia constitui um crédito que precisa ser utilizado dentro de certo tempo, sob pena de caducidade.
A central geradora pode ser detida individualmente, por um empreendimento com múltiplas unidades consumidoras (como um shopping center ou um edifício de apartamentos, por exemplo) ou em grupos reunidos em consórcios ou cooperativas. Existem no mercado empresas que desenvolvem projetos de centrais geradoras de energia renovável e organizam grupos de consumidores, reunidos principalmente em consórcios, para adquirirem ou arrendarem tais centrais. Nesses casos, as empresas que organizam o
projeto assumem, na prática, a responsabilidade pelos procedimentos para regularização da central geradora perante a ANEEL e conexão com a rede da distribuidora, cuidando também da operação e manutenção dos equipamentos.
A Lei no 14.300/2022 instituiu o Marco Legal da Microgeração e Minigeração Distribuída, o Sistema de
Compensação de Energia Elétrica (SCEE) e o Programa de Energia Renovável Social (PERS). Apesar de algumas das inovações por ela introduzidas tornarem a utilização da geração distribuída mais onerosa para os consumidores-geradores, o novo marco legal foi bem recebido pelo mercado, pois traz segurança jurídica e prevê regras de transição consideradas adequadas.
Por um lado, estabelece que, no sistema de compensação da energia injetada pelo consumidor-gerador na rede com a energia por ele consumida, deverão ser observados certos critérios com vistas à proteção das distribuidoras, que passam a ter o direito de receber ao menos o valor mínimo faturável, bem como todos os componentes tarifários não associados ao custo da energia, incluindo a Tarifa de Uso do
Sistema de Distribuição (ou TUSD Fio B), destinada a cobrir os custos do uso da sua infraestrutura. A lei também estabelece um sistema de compensação que leva em consideração o posto tarifário nos momentos em que a energia é injetada ou retirada da rede.
Além disso, na implantação dos novos projetos, o consumidor-gerador deverá prestar garantias que assegurem o cumprimento de suas obrigações relacionadas ao processo de conexão da sua nova unidade geradora à rede da distribuidora. Aliás, a repartição dos custos necessários à realização dessa conexão entre o consumidor-gerador e a distribuidora, que sempre foi fonte de divergências, passa a
contar com regras mais bem definidas.
Todas as novas normas que encarecem a atividade de geração distribuída estão sujeitas às seguintes regras de transição:
a) Sistemas de geração própria em funcionamento e novas solicitações de acesso até 500kW (quilowatts),
feitas em até 12 meses da publicação da lei (i.e., até 06/01/2023), ainda se beneficiarão das regras atuais
até o fim de 2045, desde que obedeçam a um prazo adicional para a conclusão das obras de instalação
da unidade de geração e início de injeção de energia no sistema;
b) Solicitações de acesso feitas entre o 13° e o 18° mês da publicação da lei (entre 06/02/2023 e 06/11/2023) ainda se beneficiarão das regras atuais por 8 anos; e
c) Solicitações de acesso feitas após o 18o mês da publicação da lei (06/11/2023) ainda se beneficiarão
das regras atuais por 6 anos, e os novos custos, ainda assim, somente se tornarão aplicáveis de
forma gradativa e ao longo de vários anos.
Por outro lado, o marco legal prevê que o consumidor- gerador terá direito a ser remunerado pelos benefícios, ao sistema elétrico, propiciados por suas centrais de minigeração e microgeração distribuída, conforme vier a ser determinado pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE). Também traz regras importantes que visam a assegurar o livre acesso do consumidor às redes das distribuidoras para fins de conexão de Geração Distribuída.
Vale observar que vários aspectos importantes da Lei no 14.300/2022 ainda deverão ser objeto de diretrizes e regulamentação por parte do CNPE e da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL).
3.2. Autoprodução
Como já mencionado, a autoprodução é a modalidade de geração para consumo próprio disponível ao consumidor livre ou especial, participante do ACL, e que, ao contrário do consumidor cativo que pratica a geração distribuída, pode alienar no mercado, a terceiros, seu eventual excedente de geração.
Em princípio, a capacidade de geração das usinas de autoprodução deve ser proporcional ao consumo próprio da empresa ou grupo econômico do seu titular. Ou seja, a ideia não é permitir que o autoprodutor gere significativamente mais energia do que consome, utilizando-se, assim, do benefício da
autoprodução para atuar de forma semelhante a geradoras comerciais.
Esse limite é, em geral, definido caso a caso pela ANEEL, com base nos projetos submetidos à sua aprovação. Além disso, para que o titular do empreendimento seja classificado como autoprodutor, o empreendimento deve ser destinado prioritariamente ao atendimento das suas próprias necessidades de consumo. A venda de excedentes de energia para o mercado é permitida, mas de forma acessória ao
consumo próprio.
O exercício da atividade de autoprodução depende de autorização específica da ANEEL e de adesão às regras de mercado da CCEE. Por pertencer obrigatoriamente à CCEE, como já mencionado, o autoprodutor participa do mecanismo conhecido como “mercado de curto prazo” e passa a correr os
riscos a ele inerentes.
A usina de propriedade do autoprodutor é despachada, de forma centralizada, pelo ONS, da mesma forma que as usinas de propriedade de produtores independentes e concessionários de geração. Ela tem uma “energia de placa” que é registrada na CCEE e que será utilizada para atender à demanda do consumidor livre e, no que exceder a essa demanda, para ser alienada (a critério do autoprodutor) a terceiros, como uma comercializadora ou um outro consumidor livre. A partir do momento em que a energia é vendida e o contrato registrado na CCEE, caso a usina, por motivos técnicos ou comerciais, não esteja disponível para despacho pelo ONS, o autoprodutor terá que adquirir o déficit no mercado
ao preço da ocasião e poderá, adicionalmente, ser penalizado pela CCEE.
Outra consequência da obrigatória adesão do autoprodutor à CCEE é que, com isso, fica sujeito à Convenção Arbitral da CCEE.
- A Convenção Arbitral da CCEE
4.1. Aprovação e Principais Características
Os agentes com atuação no Setor Elétrico que participam da CCEE (caso dos autoprodutores, mas não dos consumidores cativos dedicados à geração distribuída) se relacionam intensamente entre si e desses relacionamentos surgem, muitas vezes, litígios que impactam o mercado como
um todo. Tomemos o caso do mercado de curto prazo da CCEE. Como já dito, trata-se de um mecanismo para acerto de diferenças entre o que foi contratado e o que foi disponibilizado ou efetivamente consumido pelos agentes com atuação no setor. A geradora que contrata a venda de toda a sua “energia de placa” (isto é, aquela que, segundo atestado pela ANEEL, ela está apta a gerar) e, na hora H, sua usina apresenta um defeito e fica indisponível para despacho pelo ONS, deve adquirir no mercado a energia que prometeu entregar aos seus contratantes. Já a distribuidora ou consumidor livre que demandou menos energia do que havia contratado, vende ao mercado a diferença. E todo mês a CCEE realiza a contabilização desses débitos e créditos, informando-os aos
agentes devedores e credores, para que haja, em seguida, sua liquidação.
Esse processo não é isento de controvérsia. Muito pelo contrário, inúmeros são os casos em que, por motivos variados, os agentes não reconhecem os débitos que lhes foram atribuídos pela CCEE ou entendem ser titulares de créditos não reconhecidos pela CCEE. Esses casos dão origem a litígios
que, pela natureza da CCEE, têm potencial para impactar todo o mercado. Por isso, há um especial interesse do mercado em que tais litígios sejam solucionados da forma mais rápida e
técnica possível. Isso levou à opção pela arbitragem e à Convenção Arbitral da CCEE.
Nesse ponto, vale lembrar que a sentença arbitral não está ordinariamente sujeita a qualquer recurso ou
homologação pelo Poder Judiciário, constituindo, por si só, título executivo judicial apto a ser levado a cumprimento pela via coercitiva estatal. A única forma de atacá-la é por meio de ação judicial anulatória, cujo cabimento é bastante restrito.
A Lei no 10.848/2004, que autorizou a criação da CCEE, determinou, em seu art. 4o, § 5o, que “as regras para a resolução das eventuais divergências entre os agentes integrantes da CCEE serão estabelecidas na convenção de comercialização e em seu estatuto social, que deverão tratar do mecanismo e da convenção de arbitragem”.
A Convenção de Comercialização prevista no dispositivo legal acima reproduzido foi inicialmente homologada pela Resolução Normativa ANEEL no 109/2004, hoje substituída pela Resolução Normativa ANEEL no 957/2021, cujo capítulo VI regula a “Solução de Conflitos”. Seu art. 44 prevê que os
“Agentes da CCEE e a CCEE deverão dirimir, por intermédio da Câmara de Arbitragem, todos os conflitos que envolvam direitos disponíveis” em algumas hipóteses, basicamente aquelas que digam respeito à sua participação na CCEE e à comercialização de energia, sempre que o litígio possa gerar alguma repercussão “sobre as obrigações dos agentes contratantes no âmbito da CCEE”.
Finalmente, a Convenção Arbitral da CCEE foi homologada pela Resolução Homologatória no 3.173/2023 da ANEEL, a qual prevê que a CCEE deverá credenciar câmaras de arbitragem, de acordo com critérios por ela mesma estabelecidos, o que foi feito através da aprovação, pelo Conselho de Administração da CCEE, em 12 de abril de 2022, do documento denominado “Procedimento de Arbitragem – Módulo 1 – Homologação e Credenciamento de Câmaras Arbitrais”. Essa é uma importante alteração quanto à
Convenção anterior, que conferia exclusividade à Câmara FGV de Mediação e Arbitragem, da Fundação Getúlio Vargas. Com o atual texto, cria-se competitividade entre as Câmaras e flexibilidade operacional para os agentes.
Nos conflitos entre dois ou mais agentes, “a câmara de arbitragem será aquela, dentre o rol de câmaras homologadas pela CCEE, eleita pelas partes no competente instrumento contratual” e, nos conflitos envolvendo a própria CCEE, “caberá à parte interessada em iniciar a arbitragem escolher, dentre o
rol homologado pela CCEE, a câmara de arbitragem que regulamentará e administrará o procedimento, que passará a ser a câmara competente para regulamentar e administrar todas as disputas arbitrais referentes à mesma relação contratual”.
Pode-se dizer que a submissão à arbitragem dos litígios entre agentes do Setor Elétrico está regulada parcialmente na Convenção de Comercialização e parcialmente na Convenção Arbitral, regulamentação essa que poderá ainda vir a ser complementada (i) pela cláusula eventualmente inserida no
contrato bilateral celebrado no ACL ou no Contrato de Comercialização de Energia Elétrica no ACR (contratos esses conhecidos pela sigla CCEAR); e (ii) pelo regulamento da câmara arbitral competente.
As regras constantes da Convenção de Comercialização e da Convenção Arbitral seguem razoavelmente o padrão normalmente utilizado no mercado, apresentando três peculiaridades que merecem uma análise mais detida: no que diz respeito à (i) necessidade de esgotamento da análise administrativa; (ii) sua aplicação no tempo; e (iii) arbitrabilidade subjetiva, conforme comentaremos mais adiante.
4.2. A questão da Constitucionalidade
Antes, porém, convém mencionar que, com esse histórico, a Convenção de Arbitragem da CCEE padece, a
rigor, de um vício de origem que, até onde sabem os autores deste artigo, jamais foi levantado pelas partes interessadas. É que sua adoção foi tornada obrigatória por uma lei federal, algo que não se coaduna com o sistema geral da arbitragem, cuja base deve ser o livre consenso das partes.
Logo que a Lei de Arbitragem (Lei no 9.307/1996) foi editada, sua constitucionalidade foi questionada perante o STF, entre outros fundamentos, por supostamente violar o disposto no art. 5°, inciso XXXV, da Constituição Federal, que garante que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão
ou ameaça a direito”. O STF afastou essa alegação sob o fundamento de que a proibição contida na norma se dirige ao legislador, não às partes de um acordo, que têm liberdade para afastar consensualmente a jurisdição estatal. A lei de arbitragem apenas dá efetividade ao acordo das partes, mas é a vontade delas que torna obrigatória a adoção desse método alternativo de resolução de litígios.
Ora, o mesmo não se pode dizer da Convenção Arbitral da CCEE, pois, nesse caso, a adoção obrigatória da arbitragem decorre de lei. Contudo, volta-se a dizer, não se tem notícia de que tenha havido qualquer impugnação à jurisdição arbitral em algum caso coberto pela referida convenção. As vantagens e
conveniências dessa opção na hipótese são tão evidentes que ninguém se animou a questionar a sua constitucionalidade.
4.3. Análise administrativa
Já dissemos que o art. 44 da Convenção de Comercialização prevê que a arbitragem deve ser utilizada em
todos os conflitos entre Agentes da CCEE e entre estes e a própria CCEE que envolvam direitos disponíveis e possam gerar alguma repercussão sobre as obrigações dos agentes
contratantes no âmbito da CCEE.
O dispositivo, porém, faz uma ressalva que se revela problemática. Em seu inciso I, prevê que a arbitragem só poderá ser instituída se o conflito não envolver “assuntos sob a competência direta da ANEEL” ou então na hipótese de já terem sido esgotadas “todas as instâncias administrativas
acerca do objeto da questão”. Essa regra parece exigir que uma questão concreta somente poderá ser levada à arbitragem após concluída sua análise na esfera administrativa pela agência reguladora do setor.
Isso parece contrariar pacífica jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o administrado não precisa aguardar o esgotamento da esfera administrativa para levar seu litígio ao Judiciário. Naturalmente, nessa hipótese, não se trata de levar a questão ao Judiciário, pois a
jurisdição é arbitral. Mas as duas situações poderão vir a ser equiparadas para essa finalidade, pois não só o “árbitro é juiz de fato e de direito” , como a “sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário”.
De novo, não consta que essa questão já tenha sido suscitada em algum caso concreto. Nada impede, porém, que a discussão venha a surgir no futuro, caso algum agente decida levar o litígio direto para arbitragem, sem esperar pela conclusão de um eventual processo administrativo na ANEEL.
4.4. Alcance intertemporal da Convenção
O § 1o da Cláusula 25 da Convenção Arbitral estabelece que ela “não será aplicada aos procedimentos arbitrais instituídos antes da vigência desta CONVENÇÃO”. Nada fala, porém, sobre a aplicação da Convenção aos litígios que, ainda que surgidos após a sua vigência, tenham origem em fatos
ocorridos antes disso.
Essa pode parecer uma hipótese improvável na prática, pois a Convenção Arbitral, ainda que em uma versão diferente, se encontra em vigor desde agosto de 2007, há 17 anos, portanto. Seria concebível algum litígio surgir somente agora tendo por origem fatos anteriores a 2007?
No Setor Elétrico, porém, essa é uma hipótese perfeitamente plausível.
A crise energética que levou ao racionamento de 2001 e 2002, por exemplo, dá origem a importantes controvérsias que ainda poderão vir a ser objeto de procedimentos arbitrais ou, caso venha a prevalecer o entendimento de que a Convenção Arbitral a eles não se aplica, ações judiciais. Isso ocorre porque
atos da ANEEL que reconheciam créditos decorrentes daquele episódio foram logo atacados por mandados de segurança em que foram concedidas liminares suspendendo a exigibilidade de tais créditos. Como esses mandados de segurança ainda não foram definitivamente julgados, a cobrança dos créditos originados de fatos ocorridos em 2001 e 2002 poderá vir a ocorrer somente agora. Nesse caso, a cobrança deverá ser objeto de um requerimento de arbitragem ou de uma ação judicial?!
Entendemos que não haveria motivo para deixar de aplicar a Convenção Arbitral nesses casos, pois se trata de questão por ela coberta e o litígio a ser resolvido somente estará surgindo agora, já sob sua vigência, ainda que tendo por base fatos anteriores. Para que não houvesse a aplicação da Convenção, seria necessária ressalva expressa, que não existe.
4.5. Arbitrabilidade subjetiva
A Convenção Arbitral se aplica aos litígios entre os “Agentes da CCEE e a CCEE”, como já mencionado. O
parágrafo segundo da cláusula 1a da Convenção Arbitral determina, porém, que ela “não se aplica aos eventuais conflitos entre os SIGNATÁRIOS e a ANEEL”.
Os litígios que surgem entre os agentes do Setor Elétrico, frequentemente, envolvem de alguma forma a ANEEL. Muitas vezes o litígio tem por objeto a aplicação de um ato da ANEEL, como, por exemplo, no caso acima mencionado, discutindo efeitos do racionamento de 2001 e 2002.
Vários atos normativos da ANEEL reconheceram que certas geradoras eram credoras de certas distribuidoras em montantes especificados em despacho da ANEEL. Como referido, esse ato final foi atacado, na ocasião, por meio de um mandado de segurança coletivo impetrado pela associação
que reúne algumas das distribuidoras afetadas, tendo sido deferida liminar suspendendo a exigibilidade dos créditos.
O mandado de segurança acabou sendo denegado, mas ainda há recursos pendentes de julgamento. Caso a denegação da segurança seja mantida, as geradoras poderão finalmente cobrar seus créditos. Já se viu que essa cobrança estará, em nossa opinião, sujeita à Convenção Arbitral e, portanto, deve ser objeto de procedimento arbitral.
Seria possível às distribuidoras, porém, evitar a aplicação da Convenção Arbitral mediante o simples
expediente de envolver a ANEEL na disputa?! Por exemplo, tomando a iniciativa de dar início a uma demanda judicial com vistas à declaração da inexistência de dívida, incluindo a ANEEL entre os réus?! O dispositivo aqui destacado da
Convenção Arbitral dá margem a essa possibilidade, conquanto o melhor entendimento, em nossa opinião, seja o de que a ANEEL seria parte ilegítima nessa ação hipotética (já que não é titular da relação jurídica em discussão), com o que o referido expediente não deveria ter o efeito de afastar a
jurisdição arbitral.
Nesse caso, parece-nos que as geradoras devem alegar tanto a ilegitimidade da ANEEL quanto a existência de convenção de arbitragem, com consequente afastamento da jurisdição estatal, e dar início ao procedimento arbitral para cobrança do seu crédito, sendo certo que o tribunal arbitral instituído não está vinculado a qualquer decisão judicial de suspensão ou mesmo de exclusão do procedimento.
4.6. Alcance nas duas modalidades de geração para consumo próprio
Conforme já visto, o consumidor livre autoprodutor é membro obrigatório da CCEE e, como tal, está sujeito à Convenção de Arbitragem dessa instituição. Os litígios que venha a ter com outros agentes do setor, especialmente aqueles relacionados à comercialização de energia elétrica, devem ser resolvidos por arbitragem, na forma da referida convenção.
O mesmo não corre, porém, com o consumidor cativo que participa da geração distribuída, o qual não integra a CCEE e não é alcançado pela Convenção de Arbitragem da CCEE. Isso não quer dizer, naturalmente, que não possa ele, voluntariamente, aderir à arbitragem, fazendo inserir uma
cláusula compromissória nos contratos que venha a celebrar, relacionados com sua atividade de geração. Por exemplo, no contrato de consórcio que tem sido crescentemente utilizado para a participação de consumidores cativos nesse mercado. Ou no contrato de operação e manutenção da unidade
geradora que também é muito comum nesses casos.
- Conclusão
Autoprodução e Geração Distribuída são dois caminhos para a geração de energia que foram abertos aos consumidores pelo processo de liberalização e/ou privatização do Setor Elétrico. Esse processo vem sendo empreendido nos últimos 30 anos pela legislação e regulamentação brasileiras.
O primeiro caminho, como parte da criação do Ambiente de Contratação Livre; e o segundo, como um respiro de liberdade inserido no rígido sistema do ambiente de contratação regulado.
Cada um com seus requisitos e características próprias, analisadas ao longo deste artigo.
A autoprodução está coberta pela Convenção Arbitral da CCEE, com o que devem ser resolvidos por arbitragem os eventuais litígios do autoprodutor com os demais agentes do Setor Elétrico. O mesmo não ocorre com a Geração Distribuída, na qual o recurso à arbitragem precisa estar contratado em cada relacionamento para ter aplicação.
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