A inércia na arbitragem
Flavia Cristofaro
Outubro de 2025
Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/441157/a-inercia-na-arbitragem
A base fundamental da arbitragem é a autonomia da vontade, que tem origem na manifestação das partes ao elegerem esse método de resolução para dirimir conflitos oriundos de sua relação jurídica.
Existem dois momentos em que as partes podem manifestar sua vontade de se submeter à arbitragem: na formação do contrato, inserindo nele ou em instrumento apartado cláusula compromissória estabelecendo que litígios futuros serão dirimidos pela via arbitral1, ou à vista de um conflito concreto, acordando, por meio de compromisso arbitral, que aquele caso específico será decidido por arbitragem2. Ambos os institutos são espécies de convenção de arbitragem e têm o mesmo efeito de afastar a jurisdição estatal e criar a obrigação mútua de submissão ao juízo arbitral.3
Considerando que a proposta deste artigo é analisar os efeitos da inércia na arbitragem, o que nos interessa é quando, a despeito da vontade já manifestada ao firmar a convenção de arbitragem, o requerido deixa de participar das diversas etapas do procedimento.
Ainda que a opção pelo silêncio seja um direito da parte, também proveniente de sua livre manifestação de vontade, ela não deve usá-lo como tática para tentar se desvencilhar da obrigação assumida ao firmar a convenção de arbitragem. Em outras palavras, a opção da parte por não se manifestar no procedimento não afasta a jurisdição dos árbitros estabelecida na cláusula compromissória ou no compromisso arbitral.
A inércia não se resume apenas a deixar de apresentar resposta ao requerimento de arbitragem (equiparada à revelia no processo judicial) e outras manifestações no curso do procedimento, podendo se estender também à não indicação de árbitro e à não assinatura do termo de arbitragem.
Embora a lei 9.307/1996 (lei de arbitragem) não trate especificamente da inércia nesses diversos momentos do procedimento, em regra os regulamentos das diversas instituições arbitrais preveem que o comportamento omisso da parte que celebrou a convenção de arbitragem não tem o condão de obstar a regular instauração ou a continuidade do procedimento, como adiante se verá.
A única menção que a lei de arbitragem faz a um efeito (negativo) da inércia é quando dispõe, em seu art. 22, § 3º, que “a revelia da parte não impedirá que seja proferida a sentença arbitral.” Ou seja, a manifestação de vontade da parte ao firmar a convenção de arbitragem é de vinculação absoluta, impedindo-a de retroceder posteriormente e decidir não participar da arbitragem para impedir o seu trâmite regular. A lei estabelece de forma clara que a inércia do requerido ao não apresentar resposta não terá efeitos sobre o procedimento, que deve prosseguir normalmente até que a prestação jurisdicional seja efetivada, com a prolação da sentença arbitral.
Importante notar que a revelia na arbitragem não desencadeará os efeitos clássicos que tal instituto gera nos processos judiciais, quais sejam: presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor4 e desnecessidade de intimação pessoal do réu acerca dos atos processuais posteriores, correndo contra ele os prazos a partir das respectivas publicações no órgão oficial, ainda que não tenha advogado constituído nos autos5. Esses efeitos decorrem do CPC que, regra geral, não se aplica à arbitragem, a não ser que haja manifestação expressa em sentido contrário pelas partes na convenção ou no termo de arbitragem.6 7
Em relação ao primeiro de tais efeitos – a presunção de veracidade dos fatos alegados contra o revel – os regulamentos de diversas câmaras de arbitragem8 preveem que a sentença arbitral não poderá fundar-se exclusivamente na revelia. Isso significa que, de um lado, o requerente continua tendo o dever de provar suas alegações e, de outro, o tribunal arbitral deve conduzir a fase probatória como se revelia não houvesse, deixando claro para o requerente que a inércia do requerido não o exime de seu ônus probatório.
A inclusão dessa ressalva nos regulamentos e o cuidado que devem ter os árbitros de embasarem a sentença em fundamentos jurídicos, e também fáticos inobstante a revelia, se justificam para que o devido processo legal9 seja observado, evitando que o revel venha arguir a nulidade da sentença arbitral.10
Se no processo judicial a revelia permite ao juiz presumir verdadeiros os fatos alegados pelo autor, a não ser que inverossímeis ou contrários às provas dos autos, no procedimento arbitral o árbitro deve examinar os fatos e provas como se a revelia não tivesse ocorrido, testando as alegações do requerente à luz dos elementos disponíveis no procedimento, como se tivessem sido impugnadas pelo requerido11. Essa cautela se justifica para garantir a integridade da sentença arbitral.
A esse respeito, o Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem e Mediação da CAM-CCBC – Câmara de Comércio Brasil-Canadá dispõe em seu art. 30.2 que “a sentença arbitral será expressa em documento escrito e não poderá fundar-se na revelia da parte.”12
Existem disposições no mesmo sentido nos regulamentos de diversas outras câmaras, a exemplo do CAM-AMCHAM – Centro de Arbitragem e Mediação da AMCHAM Brasil13 e da CAM-B3 – Câmara de Arbitragem do Mercado.14
O Regulamento de Arbitragem do CBMA – Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem prevê textualmente que a revelia da parte não obsta a jurisdição atribuída aos árbitros na convenção de arbitragem, ao dispor que “a revelia da parte não impedirá que seja proferida a sentença arbitral.”15
Já o Regulamento de Arbitragem da Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem CIESP/FIESP afasta, em um único dispositivo, os dois efeitos que a revelia tem no processo judicial:
“10.7. O procedimento prosseguirá à revelia de qualquer das partes, desde que notificada para dele participar, bem como de todos os atos subsequentes. A sentença arbitral não poderá fundar-se na revelia de uma das partes.”16
Sobre a necessidade de intimação de qualquer das partes que deixar de participar do procedimento arbitral, assim dispõem os Regulamentos de Arbitragem da Corte Internacional de Arbitragem da CCI e da CAMARB – Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial – Brasil, respectivamente:
“6.8. Se uma das partes se recusar ou se abstiver de participar da arbitragem, ou de qualquer das suas fases, a arbitragem deverá prosseguir, não obstante tal recusa ou abstenção.”17
“3.13 Havendo convenção de arbitragem que eleja o Regulamento da CAMARB, se uma das partes se recusar ou se abstiver de participar da arbitragem, esta deverá prosseguir, não impedindo que o Tribunal Arbitral profira a sentença, devendo a parte ausente ser comunicada de todos os atos do procedimento na forma desse Regulamento, ficando aberta a possibilidade para que intervenha a qualquer tempo, assumindo o procedimento no estado em que se encontrar.”18
Interessante notar que embora o usual seja que a parte silente seja o requerido revel, os dispositivos acima transcritos garantem a qualquer das partes que deixe de participar da arbitragem o direito de ser comunicada de todos os atos do procedimento. Assim, se o requerente, apesar de ter iniciado a arbitragem, deixe de dela participar no seu curso, permanecendo inerte, deve continuar sendo regularmente intimado de todos os andamentos.19
Enquanto no processo judicial os prazos contra o revel fluam a partir de mera publicação no Diário Oficial, na arbitragem a intimação do revel dos atos subsequentes ao seu silêncio para apresentar resposta não afastam a necessidade de que ocorra sua intimação direta na forma prevista no regulamento da câmara que administra o procedimento. Ainda que no regulamento não exista previsão expressa nesse sentido, é recomendável que o revel continue sendo efetivamente comunicado de todos os desdobramentos do procedimento para que seja garantido o devido processo legal e se evite futuras arguições de nulidade.
Outros momentos cruciais da arbitragem em que a inércia da parte não pode servir para impedir o regular prosseguimento da arbitragem são a nomeação de árbitro e a assinatura do termo de arbitragem, sendo usual que os regulamentos das câmaras deixem claro que a inércia da parte não impedirá a arbitragem de prosseguir nessas situações.
O Regulamento de Arbitragem do CBMA conjuga em um mesmo dispositivo os efeitos já mencionados sobre a inércia do requerido, prevendo que a revelia não obsta o prosseguimento da arbitragem, devendo a indicação do árbitro ser feita pelo Centro e mantendo-se o direito do revel de ser informado de todos os atos do procedimento:
“4.4. O Centro não deixará de dar prosseguimento à arbitragem pela recusa ou revelia da parte demandada, desde que devidamente notificada. Nesses casos, abstendo-se a parte de nomear o Árbitro, sua designação será feita pelo Centro, devendo a parte ausente, de qualquer forma, ser informada dos atos procedimentais e processuais que se seguirem.”
O Regulamento de Arbitragem da Câmara FGV de Mediação e Arbitragem também trata em um mesmo dispositivo das diversas providências que devem ser tomadas à vista da inércia do requerido para garantir o prosseguimento da arbitragem e a integridade da futura sentença a ser proferida, prevendo expressamente que os efeitos da revelia dispostos no Código de Processo Civil não incidem no procedimento arbitral:
“Art. 26 – Recusando-se a parte requerida a submeter-se à arbitragem ou se, havendo com ela concordado, deixar de firmar o termo de arbitragem de que trata o art. 27, é facultado à parte requerente, à sua discrição, requerer, dentro do prazo de 10 (dez) dias contados a partir da intimação que lhe fará a Câmara FGV, que esta promova o andamento da arbitragem, desde que a convenção de arbitragem determine que a mesma seja administrada pela Câmara FGV e de acordo com seu Regulamento.
(…)
Parágrafo 3º – Dando-se prosseguimento à arbitragem, na forma deste artigo, caberá ao Diretor Executivo a indicação de árbitro como se indicado tivesse sido pela Requerida, a qual, como revel, será intimada de todos os atos procedimentais, podendo ingressar no processo a qualquer tempo, no estado em que este se encontrar. A revelia, no procedimento arbitral, não acarreta os efeitos previstos no CPC.”20
Se qualquer das partes deixar de assinar o Termo de Arbitragem, essa inércia também não deve impedir o normal prosseguimento da arbitragem, como se vê, exemplificativamente21, dos regulamentos do CAM-CCBC e da CAM-AMCHAM:
CAM-CCBC: “23.3 A ausência de qualquer das partes regularmente convocadas para a eventual reunião inicial ou sua recusa em firmar o Termo de Arbitragem não impedirão o normal seguimento da arbitragem.”
CAM-AMCHAM: “12.4. A ausência de assinatura de qualquer uma das Partes no Termo de Arbitragem não impedirá o regular processamento da arbitragem.
Esse breve panorama de como a inércia na arbitragem é tratada na lei 9.307/1996, ainda que de forma sucinta, e mais detalhadamente nos regulamentos de algumas das principais câmaras de arbitragem em atuação no Brasil, demonstra que o silêncio de uma das partes não exime o árbitro de analisar cuidadosamente todos os elementos disponíveis no procedimento, testando as teses apresentadas mesmo à vista de revelia e de documentar todas as intimações dirigidas ao requerido revel ou ao requerente que deixa de se manifestar. Esses cuidados têm como objetivo garantir o devido processo legal e, assim, a integridade da sentença arbitral contra frívolas alegações de nulidade por aquele que optou pelo silêncio.
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1 Lei de Arbitragem, Art. 4º: “A cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato.”
2 Lei de Arbitragem, Art. 9º: “O compromisso arbitral é a convenção através da qual as partes submetem um litígio à arbitragem de uma ou mais pessoas, podendo ser judicial ou extrajudicial.”
3 Lei de Arbitragem, Art. 3º: “As partes interessadas podem submeter a solução de seus litígios ao juízo arbitral mediante convenção de arbitragem, assim entendida a cláusula compromissória e o compromisso arbitral.”
4 CPC, Art. 344: “Se o réu não contestar a ação, será considerado revel e presumir-se-ão verdadeiras as alegações de fato formuladas pelo autor.” Interessante notar que desde a edição do CPC/2015 (Lei nº 13.105/2015) positivou-se o entendimento de que essa presunção não é absoluta, tendo sido inserido no art. 345 o inciso IV: “a revelia não produz o efeito mencionado no artigo anterior se (…)
IV – as alegações de fato formuladas pelo autor forem inverossímeis ou estiverem em contradição com prova constante dos autos.”
5 CPC, Art. 346: “Os prazos contra o revel que não tenha patrono nos autos fluirão da data de publicação do ato decisório no órgão oficial.
Parágrafo único. O revel poderá intervir no processo em qualquer fase, recebendo-o no estado em que se encontrar.”
6 STJ, 3ª T., REsp nº 1.851.324/RS, Rel. Min. Marco Aurelio Bellizze, j. 21/08/2024.
7 FICHNER, José Antonio e SALTON, Rodrigo. (In)aplicabilidade do CPC ao procedimento arbitral. Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/414027/in-aplicabilidade-do-cpc-ao-procedimento-arbitral. Acesso em 29/09/2025.
8 As referências aqui feitas não se pretendem exaustivas e são de regulamentos em vigor à época da publicação deste artigo.
9 Lei de Arbitragem, Art. 21, § 2º: “Serão, sempre, respeitados no procedimento arbitral os princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento.”
10 Lei de Arbitragem, Art. 32: “É nula a sentença arbitral se: (…) VIII – forem desrespeitados os princípios de que trata o art. 21, § 2º, desta Lei.”
11 “Na arbitragem, a ausência de manifestação do demandado deve ser tratada apenas como matéria probatória, o que não impede os árbitros de analisarem os fatos à luz dos elementos que que lhes foram apresentados pela parte contrária, nem de fazerem as suas próprias investigações na tentativa de descobrir se as informações do demandante, de fato, são verdadeiras, ainda que não tenham sido impugnadas. Infere-se, desse modo, que, salvo se as partes estipularam de forma diversa, a revelia não induz presunção de veracidade na arbitragem.” RODRIGUES, Flávia Benzatti Tremura Polli. Contumácia e revelia na arbitragem. Revista Brasileira de Arbitragem nº 42, abr-jun/2014.
12 Regulamento de Arbitragem do CAM-CCBC (2022). Disponível em: https://www.ccbc.org.br/cam-ccbc-centro-arbitragem-mediacao/wp-content/uploads/sites/10/2023/05/Regulamento-de-Arbitragem-2022.pdf. Acesso em 29/09/2025.
13 Regulamento de Arbitragem do CAM-AMCHAM (2023): “16.5. A Sentença Arbitral não poderá fundar-se apenas na revelia. Disponível em: https://mkt.amcham.com.br/materiais/cam/regulamento-arbitragem-2023.pdf. Acesso em 29/09/2025.
14 Regulamento da CAM-B3 (2011). “2.2 Ausência de resposta. A ausência de resposta da Requerida regularmente notificada sobre o Requerimento de Arbitragem não impedirá o regular prosseguimento do procedimento arbitral. A sentença arbitral, contudo, não poderá fundar-se somente na revelia.” Disponível em: https://www.camaradomercado.com.br/pt-br/arbitragem.html Acesso em 29/09/2025.
15 Art. 11.7 do Regulamento de Arbitragem do CBMA (2025). Disponível em: https://cbma.com.br/wp-content/uploads/2025/01/CBMA-Regulamento-de-Arbitragem-CBMA-02.01.2025.pdf. Acesso em 29/09/2025.
16 Regulamento de Arbitragem CIESP/FIESP (2013). Disponível em: https://www.camaradearbitragemsp.com.br/regulamento-arbitragem. Acesso em 29/09/2025.
17 Regulamento de Arbitragem da CCI (2021). Disponível em: https://iccwbo.org/wp-content/uploads/sites/3/2023/06/icc-2021-arbitration-rules-2014-mediation-rules-portuguese-version.pdf. Acesso em 29/09/2025.
18 Regulamento de Arbitragem da CAMARB (2019). Disponível em:
https://camarb.com.br/regulamento/regulamento-de-arbitragem-2019/. Acesso em 29/09/2025.
19 O regulamento do CAM-CCBC contém previsão no mesmo sentido: “8.2 O processo prosseguirá na ausência de quaisquer das partes, desde que devidamente notificadas, nos termos do artigo 3.3.”
20 Regulamento de Arbitragem da Câmara FGV (2016). Disponível em:
https://camara.fgv.br/sites/camara.fgv.br/files/artigos/regulamento_de_arbitragem.pdf. Acesso em 29/09/2025.
21 No mesmo sentido: art. 12.3 do Regulamento de Arbitragem do CBMA; art. 5.2 do Regulamento de Arbitragem da Câmara FIESP/CIESP; art. 4.2.1 do Regulamento da CAM-B3.
No âmbito da CCI, a sistemática é um pouco diferente, devendo a Ata de Missão não assinada por alguma das partes ser submetida à Corte Internacional da CCI para aprovação, etapa após a qual a arbitragem poderá ter prosseguimento (art. 23.3 do Regulamento de Arbitragem da CCI).