FTX: EXCHANGE OU BANCO?
Dezembro de 2022
Joaquim Simões Barbosa e Daniela Bessone
Episódio ressalta a falta que faz uma regulação adequada
Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/ftx-exchange-ou-banco-11122022
A desistência da Binance de adquirir a FTX, uma de suas maiores concorrentes, colocou o já abalado mercado desses ativos em modo desespero. Esse movimento levou a uma corrida de saques e à consequente quebra da FTX, último capítulo de uma novela que, como disse o New York Times, fez uma empresa de 32 bilhões de dólares virar pó da noite para o dia.
Como todas as Centralized Exchanges (CEX), a FTX se apresentava como uma espécie de marketplace onde investidores podiam comprar, vender e guardar ativos digitais, tendo chegado a deter depósitos de clientes no valor de vários bilhões de dólares. Há consenso entre os analistas de que a debacle da FTX tem relação direta com a atuação paralela de uma outra entidade, a Alameda Research, liderada por Caroline Ellison, supostamente namorada de Bankman-Fried, criador e CEO da FTX.
A fim de adquirir ativos digitais específicos, os clientes transferiam para a FTX recursos em moeda fiduciária. Aparentemente, a FTX registrava a aquisição do ativo em uma conta em nome do cliente, mas não necessariamente o adquiria de fato na correspondente plataforma de blockchain. Em muitos casos, os recursos entregues pelos clientes da FTX eram emprestados à Alameda, um fundo de investimentos que especulava no mercado cripto e que os utilizava para fazer suas próprias apostas.
A discrepância entre a aplicação que o cliente da FTX imaginava ter feito e os ativos efetivamente adquiridos, na ponta, pela Alameda, criaram, obviamente, um enorme risco de descasamento. Esse risco se acentuou com a grande depreciação (em graus muito variados) dos valores dos ativos cripto ocorrida desde o início da mais recente onda do chamado “inverno cripto”, em abril deste ano (o valor do Bitcoin caiu mais da metade em 90 dias, enquanto nesse mesmo período o Ether sofreu redução do preço em dólar de quase 75%).
Quando o mercado se deu conta de que isso estava ocorrendo e que a situação era grave (fato exposto publicamente pela desistência da Binance), deu-se a corrida dos clientes da FTX, pedindo a efetiva entrega dos ativos adquiridos, o que a empresa não pode fazer e acabou falindo. Naturalmente, a quebra desse importante ator foi mais um formidável abalo no já muito sofrido mercado cripto. Muita gente perdeu muito dinheiro (e confiança) e a reputação do setor ficou bastante prejudicada.
O episódio ressalta a falta que faz uma regulação adequada para a consolidação dessa promissora nova fronteira do mundo das finanças.
A FTX se apresentava como um marketplace onde os investidores poderiam negociar com ativos digitais, mas, em realidade, atuou como uma instituição financeira, um banco. Ela não era apenas um intermediário, corretor, que viabilizava a compra, venda e guarda dos ativos pelos investidores. Da forma como atuava, ela tomava dinheiro emprestado do cliente, prometendo devolver o valor captado indexado pelo ativo por ele desejado, e concedia empréstimos à Alameda, que aplicava os recursos nos ativos de sua escolha.
Não há nada de intrinsicamente errado com essa atividade, que poderia ser licitamente exercida. O problema é a falta de transparência. Uma eventual e futura regulamentação deveria tratar de exigir que fique bem claro para o mercado qual é, afinal de contas, a atividade que está sendo efetivamente exercida e os correspondentes riscos nela envolvidos. E, quando a atividade for a de mera corretagem, a regulamentação deve prever mecanismos eficazes para que ocorra uma efetiva segregação patrimonial, mantendo os ativos adquiridos em nome dos clientes bem segregados daqueles pertencentes à Exchange, únicos aos quais os credores desta teriam acesso.
Uma segregação como essa, que cria patrimônios de afetação, é algo bem conhecido do nosso direito, mas sua criação só pode ser feita por lei formal, aprovada pelo Congresso Nacional, já que representa uma exceção ao princípio geral de que todos os bens do devedor respondem por todas as suas dívidas. Essa matéria, aliás, estava contemplada no projeto de lei sobre o assunto e acabou retirada da versão que vem de ser aprovado pelo Congresso. É uma pena que o episódio da FTX não tenha sido aproveitado para reverter essa equivocada opção.