MINIRREFORMA DA LEI DAS SAS E DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS – PARTE II – ARBITRAGEM
Agosto de 2023
Joaquim Simões Barbosa
Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-ago-17/simoes-barbosa-arbitragem-minirreforma-lei-sas
A arbitragem societária, especialmente aquela que tem por origem uma cláusula compromissória estatutária, enfrenta dificuldades que não são triviais. O relacionamento entre acionistas, a sociedade e seus administradores tem peculiaridades que tornam a utilização da arbitragem especialmente desafiadora.
Por exemplo, o contrato de sociedade é um contrato plurilateral que admite alteração por decisão majoritária, enquanto a arbitragem exige inequívoco consentimento das partes para afastamento da jurisdição estatal. Essa situação dá origem a um debate doutrinário sobre se a cláusula compromissória introduzida no estatuto por deliberação majoritária vincula a todos os acionistas, mesmo aqueles que votaram contra a adoção desse método de resolução dos conflitos societários. A melhor doutrina parece se inclinar no sentido afirmativo, mas essa tendência não consegue afastar completamente o incomodo que a situação gera.
Por outro lado, muitos dos litígios que surgem desse relacionamento têm repercussões que ultrapassam as pessoas neles diretamente envolvidas. Uma ação para anulação de deliberação assemblear proposta por acionista minoritário contra a companhia afeta todos os acionistas, mesmo aqueles que não participem do processo. Esse fato tem diversas importantes implicações no contexto de uma arbitragem.
Nessas circunstâncias, seria possível aplicar ao procedimento arbitral regime de confidencialidade absoluta, como é usual nas outras modalidades de arbitragem? O regulamento da Câmara do Mercado, que processa os litígios societários entre as companhias listadas no Novo Mercado (segmento especial de listagem da B3), seus acionistas e administradores, prevê que o procedimento será sigiloso. Mas como impedir que ao menos os demais acionistas da companhia envolvida tenham acesso aos autos de um litígio cujo desfecho afetará diretamente seus legítimos interesses?
No mesmo exemplo de disputa sobre a validade de uma deliberação assemblear, é possível que diferentes acionistas decidam dar início a procedimentos autônomos com objetos coincidentes ou ao menos conexos. Como devem ser tratados esses diferentes procedimentos? Eles podem/devem ser reunidos para julgamento conjunto pelo mesmo tribunal? Nesse caso, como deve se dar a escolha dos árbitros, entre outros importantes aspectos relacionados à estruturação e condução do procedimento consolidado?
Essas são questões realmente difíceis e que talvez expliquem o fato de que pouquíssimos países no mundo adotam a arbitragem como meio de resolução de disputas societárias, especialmente envolvendo companhias abertas. Estudo feito a pedido da CVM e do Ministério da Economia, com apoio técnico do Comitê de Governança Corporativa da OCDE, concluiu que, dentre nove países pesquisados, somente a Espanha adotava a arbitragem nesse contexto [1]. Países que historicamente tiveram grande influência na formação da cultura jurídica do Brasil, como França, Alemanha, Itália, Portugal, Estados Unidos e Reino Unido, não fazem uso desse tipo de arbitragem.
No entanto, as inegáveis vantagens que a opção pela arbitragem oferece para o equacionamento de litígios complexos e de grande especialização, como é o caso dos litígios societários, têm levado as comunidades jurídica e empresarial brasileiras a perseverar no esforço de viabilização do instituto também nessa área. Os muitos desafios que se apresentam nessa caminhada têm sido gradativamente enfrentados pela legislação brasileira, em uma série de reformas da lei das sociedades anônimas. O Projeto de Lei nº 2.925/23, apresentado pelo Poder Executivo ao Congresso em 02 de junho de 2023, traz mais uma importante iniciativa nesse sentido.
A versão original da Lei nº 6.404/76 não tratava do tema e continha um dispositivo, o §2º do artigo 109, que poderia ser interpretado como dificuldade adicional à adoção da arbitragem estatutária. O referido dispositivo estabelece que “os meios, processos ou ações que a lei confere ao acionista para assegurar os seus direitos não podem ser elididos pelo estatuto ou pela assembleia-geral”. Diante de tal comando, surgiu a dúvida: seria lícito um dispositivo estatutário que afastasse a jurisdição estatal para dirimir o mérito das disputas entre acionistas e a companhia?
Para eliminar essa dúvida, a Lei nº 10.303/01 introduziu mais um parágrafo ao citado artigo, esclarecendo que “o estatuto da sociedade pode estabelecer que as divergências entre acionistas e a companhia, ou entre os acionistas controladores e os acionistas minoritários, poderão ser solucionadas mediante arbitragem, nos termos em que especificar”.
Esse dispositivo, porém, não chegou a enfrentar a questão do consentimento. Graças a ele, ficou esclarecido que a arbitragem estatutária não seria intrinsicamente ilícita, podendo ser adotada pelas companhias. Nas companhias que fossem constituídas com a cláusula compromissória estatutária, ou naquelas em que sua introdução fosse deliberada com o voto afirmativo de todos os acionistas, a situação não oferecia maiores dificuldades: a cláusula é lícita e obriga todo o quadro societário.
Mas e quando a cláusula viesse a ser introduzida por deliberação majoritária, contra o voto de parte dos acionistas? Seria possível, nesse caso, vincular todos os acionistas? Houve muito debate na doutrina sobre essa questão, gerando incerteza jurídica, algo que a Lei nº 13.129/2015 procurou combater com a introdução de um novo dispositivo na Lei das SAs, o artigo 136-A, que deu uma solução criativa e bastante satisfatória para a questão.
A inserção de convenção de arbitragem no estatuto social passou a dar direito de recesso ao acionista dissidente, exceto em companhias cujas ações apresentem grau elevado de liquidez e dispersão no mercado, situação em que o acionista descontente com a deliberação pode se retirar da companhia mediante venda de suas ações no mercado, sem maiores dificuldades ou prejuízos. Com essa medida, o acionista que, podendo se retirar da sociedade (via recesso ou venda das ações, conforme o caso) não o faz, manifesta, com essa decisão, seu consentimento tácito com a adoção da opção pela arbitragem. O consentimento tácito é, para essa finalidade, perfeitamente admissível.
Quanto à questão da confidencialidade, foi primeiro enfrentada pela CVM com a edição da Resolução nº 80/2022, cujo Anexo I regula a obrigação da companhia aberta, seus acionistas controladores e administradores de divulgar informações sobre as demandas societárias envolvendo a companhia, aí incluídas as arbitragens.
A Resolução da CVM se aplica a disputas “nas quais possa ser proferida decisão cujos efeitos atinjam a esfera jurídica da companhia ou de outros titulares de valores mobiliários de emissão do emissor que não sejam partes do processo, tais como ação de anulação de deliberação social, ação de responsabilidade de administrador e ação de responsabilidade de acionista controlador”.
Nessas disputas, a companhia “deve divulgar ao mercado as principais informações relativas à demanda”, incluindo notícia acerca da sua instauração, quem são as partes, os valores, bens ou direitos envolvidos, principais fatos discutidos, pedido ou provimento pleiteado, além de, no caso de arbitragem: “apresentação de resposta, celebração de termo de arbitragem ou documento equivalente que represente estabilização da demanda, decisões sobre medidas cautelares ou de urgência, decisões sobre jurisdição dos árbitros, decisões sobre inclusão ou exclusão de partes e sentenças arbitrais, parciais ou finais” e também qualquer acordo que venha a ser celebrado com a parte adversária, “indicando valores (…) e outros aspectos que possam ser do interesse da coletividade dos acionistas”.
Consciente de que o Regulamento da Câmara do Mercado, como aqui já dito, impõe o sigilo aos procedimentos nele baseados, a CVM ressaltou expressamente que “obrigações decorrentes de convenções de arbitragem, de regulamentos de órgãos arbitrais institucionais ou entidades especializadas ou de qualquer outra convenção não eximem o emissor do cumprimento das obrigações de divulgação previstas neste anexo, respeitadas as hipóteses e observados os limites de sigilo decorrente de lei”.
A iniciativa da CVM é agora reforçada pelo novo PL, que acrescenta três novos parágrafos ao antes mencionado artigo 109 da Lei das SAs, o primeiro dos quais estabelece que “os procedimentos arbitrais relativos a companhias abertas serão públicos, nos limites estabelecidos na regulamentação a ser editada pela Comissão de Valores Mobiliários”.
Um dos outros parágrafos que serão acrescentados ataca outro aspecto negativo que a confidencialidade dos procedimentos arbitrais traz e que vem sendo muito criticado pela comunidade jurídica: a perda da jurisprudência formada na prática das disputas societárias. Para tentar reverter isso, o novo dispositivo estabelece que “as instituições arbitrais darão publicidade a seus precedentes relativos a demandas que envolvam companhias abertas e os divulgarão em seus sítios eletrônicos, organizados por questão jurídica decidida”.
A possibilidade de conhecer os precedentes que venham a ser formados na prática da arbitragem societária será sem dúvida, apreciada pela comunidade jurídica, ainda que, a rigor, não se trate tecnicamente de “jurisprudência”, ao menos não aquela que constitui fonte de direito. Na arbitragem não existem os mecanismos de uniformização de jurisprudência do processo judicial estatal. Não existe incidente de uniformização. Não existe STJ. Até porque cada tribunal arbitral tem uma composição diferente e um entendimento próprio.
Finalmente, o novo PL incumbe a CVM de expedir regulamento estabelecendo “requisitos adicionais às instituições arbitrais nas ações que envolvam companhias abertas, inclusive quanto à necessidade de explicitar, em seus regulamentos, o procedimento para reunião dos processos arbitrais nas hipóteses de conexão e continência, na forma prevista no §4º-E do artigo 159”, esse, mais um dispositivo novo a ser acrescentado, estabelecendo a aplicação das regras relativas à conexão e à continência previstas no CPC aos procedimentos iniciados por diferentes acionistas e discutindo os mesmos fatos. O PL, portanto, deixa para a CVM a tarefa de definir as regras concretas que se aplicarão à complexa tarefa de consolidação de procedimentos nesse contexto.
[1] Disponível em: https://www.oecd.org/corporate/shareholder-rights-brazil.htm